Coerência
 



Coerência

por Rubem Penz

Experimente dizer para qualquer pessoa situada na elite gaúcha que você foi para Barcelona e fez compras. Foi para Paris e fez compras. Foi para Buenos Aires e fez compras. Para Berlim, para Nova Iorque, para Lisboa, Cairo, Roma, Londres e fez compras. Fale dos shoppings visitados e de como estão os preços, de como é atencioso o atendimento, da praça de alimentação etc. Depois do choque, com certeza haverá o questionamento: e os museus? Os parques? As igrejas? Os shows? Teatros, centros culturais, restaurantes, cemitérios, palácios, livrarias? Então, anuncie solenemente que não foi a nada disso.

Se o interlocutor tiver a intimidade dos amigos verdadeiros, terá liberdade para responder que sua viagem foi um enorme desperdício. Mais: que você é um incurável bronco, alguém com recursos financeiros para fazer um passeio tão bacana e, nem assim, com discernimento para aproveitar o que realmente importa numa cidade distante: sua história, sua cultura, seus hábitos, suas singularidades. Eletroeletrônicos, relógios, vestuário e joias de grife podem ser comprados em qualquer free shop ou cidade cosmopolita. Ou mesmo pela internet! Defrontar-se com o que o lugar produziu (produz) de relevante e único para a humanidade que é a verdadeira oportunidade de crescimento.

Experimente, então, dizer para as mesmas pessoas que as verbas destinadas para as Secretarias da Cultura do estado e dos municípios são histórica e vergonhosamente baixas, que há pouco incentivo aos criadores nas artes plásticas, teatro, música e literatura, que os museus de nossas cidades estão relegados ao quinto plano, que as igrejas e cemitérios fecham por falta de segurança, que os institutos e fundações culturais sofrem na míngua, que mais e mais bares e restaurantes tradicionais fecham a cada dia, que os artistas locais penam as dores do mundo para ver uma notinha de três linhas nos jornais sobre seus trabalhos (quando conseguem), que nenhum habitante local é capaz de formular um roteiro cultural encorpado se um amigo vier visita-lo.

Se o interlocutor tiver a intimidade dos amigos verdadeiros, terá liberdade para dizer que você está viajando na maionese. Onde já se viu destinar o dinheiro suado dos cidadãos para artistas locais, esses vagabundos? Criar um ambiente favorável para o surgimento de uma cena cultural forte e multifacetada para quê? Educar a população para compreender sua própria história e valorizar os múltiplos sotaques locais em tempos de globalização? Isso é loucura! Ainda mais para atividades dirigidas às elites ou aos turistas! Quem deve dar conta disso é a iniciativa privada: os artistas precisam compreender que são profissionais liberais e sujeitos às regras de mercado. Estão se queixando? Vão pegar no batente, trabalhar numa loja!

Pois é. Empreender uma carreira artística não é nada fácil. Fazer os pares notarem a dimensão do investimento de vida inteira no aprimoramento e no fazer artístico é ainda mais complicado. Convencer os veículos de comunicação e investidores que o que você faz é relevante e valioso, então, quase impossível. Porém, quem sabe o primeiro passo seja cobrar dos amigos e de toda a sociedade um pouco de coerência. Porto Alegre não é Paris, Roma nem mesmo Montevidéu, para ficar em capitais. Mas bem que pode ser uma cidade melhor para franceses, italianos, norte-americanos, argentinos, paulistas, cariocas, mineiros ou porto-alegrenses que circularem por aqui, para além dos portões dos shoppings.

 

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