Olhos lilases
 



Olhos lilases

por Elenilto Saldanha Damasceno

Jonattan Rodriguez Castelli, economista e professor, estreou como escritor de ficção com sua coletânea de contos Olhos lilases. Produzido pela Editora Metamorfose, de Porto Alegre, o livro foi lançado em setembro, em Ponta Porã. O autor é gaúcho, mas reside, atualmente, na cidade sul-mato-grossense, onde é professor no campus local da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS).

A coletânea é constituída por dezenove contos. Segundo Jonattan, boa parte deles foi produzida durante os últimos dez anos e publicada no seu blog, Isto é o caos, tchê, criado em 2012. Porém, foi por meio de sua participação no curso de formação de escritores da Metamorfose que o projeto editorial dessa sua primeira obra literária se consolidou, mediante a seleção de alguns de seus contos que estabeleciam sinergia e diálogo entre si, os quais também passaram por um cuidadoso processo de reelaboração pelo autor, a ponto de chegarem à excelência narrativa. A leitura completa do livro revela uma unidade que se constitui, especialmente, pelos temas e pelos tons de suas abordagens, os quais, em geral, repercutem como consistente crítica em relação a algumas das principais mazelas da sociedade brasileira, históricas e atuais, como a desigualdade social, a violência, o racismo, o machismo.

A partir de abordagens diretas de dramáticas questões sociais contemporâneas em nosso país, a obra literária filia-se à estética neorrealista, uma das principais e mais profícuas vertentes da Literatura nacional desde a segunda geração modernista. No entanto, o conto que abre a coletânea e dá título ao livro, Olhos lilases, extrapola a realidade e estabelece relações com a fantasia, ou com o realismo fantástico. Esse é um primeiro aspecto específico a destacar como elemento que instiga a curiosidade para estabelecimento de relações com os demais textos.

Entre as influências na escrita de Jonattan Castelli, despontam, acentuadamente, ressonâncias da obra de um dos maiores contistas brasileiros, Rubem Fonseca. Nesse aspecto, a violência, fruto da desigualdade social em uma nação que se modernizou a partir dos fundamentos de uma estrutura social colonialista e racista, desponta, nos contos, em cenários rurais e, mais agudamente, em cenários urbanos periféricos. O autor revela grande capacidade de representação desses espaços físicos para a construção de ambientações que configuram a crueza das situações retratadas. Nesses ambientes, tanto vítimas quanto agentes da violência originam-se de uma mesma amálgama de precarização da vida e sub-humanização, imposta por um sistema econômico alicerçado, justamente, na desigualdade social. O conto Tau Herculídeas, por exemplo, apresenta magistralmente essa ambientação de exposição à violência, ao representar a Vila Cruzeiro, em Porto Alegre, como retrato de outras regiões periféricas ou suburbanas de Porto Alegre e de outras áreas metropolitanas no Brasil.

Em alguns contos, como True crime, Jornada de trabalho, Um homem de princípios e A inspiração é vermelha, o foco narrativo volta-se para o agente da violência, em tramas apresentadas ora em narração autodiegética (em primeira pessoa), ora em narração heterodiegética (em terceira pessoa). São textos que desacomodam bastante quem os lê, à medida que conduzem à aproximação à mente e às motivações de assassinos já experientes e frios.

A impressão é de que o autor conhece e, por isso, retrata muito bem essa realidade, tanto a partir do contexto social das regiões periféricas de uma metrópole, como Porto Alegre, quanto das regiões mais distantes do país, em zonas fronteiriças como Ponta Porã, na divisa com o Paraguai. Em geral, em tais territórios, a criminalidade tende a transformar o cotidiano, a existência e a luta pela sobrevivência em um campo minado.

Outro aspecto interessante na coletânea é uma sequência de contos, em sua primeira metade, que leva à inferência de serem autoficcionais, como as escrevivências de uma das grandes escritoras brasileiras, Conceição Evaristo. Essa série de textos estabelece relações diretas e contínuas de representação do espaço escolar como ambiente hostil, permeado por racismo, misoginia, injustiças e violências culturalmente autorizadas e, infelizmente, ainda visíveis. O autor, que é professor, também deve conhecer muito bem esse contexto. Fazem parte dessa sequência os contos O dia em que aprendi como funciona a justiça, Quando a raiz é escura, o vento leva a árvore embora, Tio Jandir e o sensível, íntimo e melancólico O peso das palavras não ditas.

Há muito mais ainda a ressaltar: a nobreza em estado de miséria em Matilde; a concisão em Matador; o desprezo à vida em Noite de São João; o sensacional A montanha de pedra, um dos meus contos preferidos no livro, com um trabalho de linguagem inspirado em um dos mais geniais escritores de todos os tempos, Guimarães Rosa; as denúncias da misoginia em A valsa, Amor e O que aconteceu com Vivian Ward? e da simbiose alienação/exploração em Um país de self-made men é a solução para nossos problemas; a narrativa surpreendente e, em alguns momentos, extremamente chocante de A inspiração é vermelha, a qual fecha, estrategicamente, o conjunto de textos.

Não só na condição de revisor, mas, principalmente, como leitor apreciador de boa Literatura, recomendo muito a leitura de Olhos lilases, uma ótima estreia de Jonattan Rodriguez Castelli na escrita de ficção.

 

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