Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios
 



Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

por Elenilto Saldanha Damasceno

O romance "Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios", do escritor paulista Marçal Aquino, tornou-se tema de muita discussão, há alguns meses, devido à exclusão da indicação de sua leitura para o vestibular da Universidade de Rio Verde, no interior de Goiás. Essa decisão foi fruto de polêmica promovida por um deputado federal goiano bolsonarista, incapaz de compreender e assimilar a liberdade de criação literária e de expressão artística, o qual fez uma campanha de rechaço à obra por considerá-la pornográfica e pelo fato de o protagonista cultivar maconha no quintal de sua casa, para consumo próprio. Infelizmente, a instituição de ensino rendeu-se à repercussão dessa campanha que arrebanhou pessoas nas milícias digitais as quais, geralmente, não costumam ler textos literários. Assim, a maioria delas condenava um livro que não conhecia, e essa é a intenção principal de quem levantou a polêmica, que não se conheça e não se reflita sobre os temas retratados na narrativa, os quais revelam as contradições e a hipocrisia do pensamento político conservador e extremista avesso à democracia e à liberdade de expressão.

O romance divide-se em quatro partes, subdivididas em capítulos sem numeração nem título. Com exceção da segunda parte, todas apresentam um narrador autodiegético, a personagem protagonista Cauby, um fotógrafo que sai de São Paulo e se instala em uma região amazônica no interior do Pará, onde o garimpo de ouro é a principal atividade econômica.

A primeira parte é intitulada "O amor é sexualmente transmissível". O início da narrativa induz ao estabelecimento de relações com a abertura do romance "Crônica de uma morte anunciada", do escritor colombiano Gabriel García Márquez, haja vista o narrador prenunciar a própria morte: "Não adianta explicar. Você não vai entender. Às vezes, como num sonho, vejo o dia da minha morte. É uma coisa meio espírita, um flash. E, embora a mulher não apareça, sei que é por causa dela que estão me matando". A mulher mencionada é Lavínia, uma jovem de 24 anos, capixaba, mas que vive no Pará, casada com um pastor evangélico bem mais velho.

Já no segundo capítulo, é anunciado o violento contexto social nas regiões onde se desenvolve o garimpo. Um delegado convoca Cauby para fotografar corpos à beira de um barranco: "Os cadáveres estavam jogados num monte de lixo. Três caras. Tinham usado munição pesada neles. Principalmente na cabeça. Um negócio feio. [...] Havia um clima de guerra na cidade. E a mineradora jogava duro com seus adversários". Note-se que esse assunto voltou à tona nos anos recentes, em função do avanço do garimpo predatório e ilegal, inclusive em áreas de preservação ambiental e habitadas por povos originários. Aliás, no início deste ano, o Brasil e o mundo tomaram conhecimento da situação catastrófica e desumana em que viviam nativos ianomâmis em seu território invadido e devastado pelo garimpo ilegal.

O interesse por fotografia aproxima Cauby e Lavínia e leva-os a um conflituoso relacionamento amoroso. Cauby descreve-a como uma personalidade "instável, com tendência para a ciclotimia"; talvez sofresse de transtorno dissociativo de identidade (TDI). Lavínia "alternava fases de furor sexual com períodos de quase desinteresse". Cauby comenta que "existem duas mulheres dentro de Lavínia. Uma era casada. Casadíssima. Com um homem a quem chamavam de santo. Um homem exatos trinta e oito anos mais velho do que ela. A outra Lavínia vinha me visitar. A bela da tarde".

Eis mais um tema inoportuno para o conservadorismo político em nosso país, com forte base de sustentação no moralismo religioso. O marido de Lavínia, Ernani, é "um sessentão charmoso e conservado", pastor de "gente simples e fervorosa" em uma denominação neopentecostal em "que não era incomum usarem pepitas para dar sua contribuição à igreja. O dízimo de um Deus à beira de um garimpo". O amante acredita que o marido traído "também era obcecado por Lavínia. Por metade dela, de certa maneira. Pela Lavínia dócil, que ele ergueu da sarjeta e salvou. Da outra, que não conseguia compreender nem controlar, Ernani tinha medo".

A segunda parte, "Carne-viva", apresenta um narrador heterodiegético, o qual se detém na relação entre Lavínia e Ernani, pela qual desenvolve a representação do pastor e de suas contradições. Conheceram-se em Vitória, no Espírito Santo. Ernani, já com 59 anos, enviuvou na mesma semana em que se aposentou. Entrou em depressão profunda, e a conversão foi a saída para seu abismo pessoal. Um ano depois, já era pastor. Ao acompanhar, na capital capixaba, a construção de mais um templo de sua denominação religiosa, conheceu Lavínia em um ponto de prostituição próximo ao hotel em que se hospedou. Não houve nada entre eles, mas ao retornar para o hotel, "não tirava Lavínia da cabeça. Pensava nela como uma criatura vulnerável, que tinha cruzado seu caminho pedindo ajuda por baixo de uma fantasia de meretriz. Acreditava ter captado um S. O. S. daquele espírito. Tinha obrigação de oferecer sua mensagem de conforto. Até então ele não havia pensado em Lavínia como uma tentação física. Ernani sentia uma espécie de excitação espiritual". O transtorno dissociativo de identidade é inferido quando o narrador relata que "Lavínia estava se drogando pesado na época. Não dispensava nada: pó, comprimido, erva, chá, o que pintasse. Só evitava as agulhas e o cachimbo de crack, tinha medo. Ficava dopada para aguentar o ruído do mundo ao seu redor. E também porque a outra se aproximava, sua metade crespa. Lavínia pressentia a tempestade: sentia-se irritada, melancólica, seu humor se tornava fosco. Uma forma aguda de TPM. Não conseguia ficar dentro de si nessas ocasiões, queria ausentar-se. Para não estar em casa quando a outra chegasse".

No segundo encontro, Ernani sentiu-se excitado. Lavínia beijou-o. Não era a primeira vez que ele era assediado após se tornar pastor. "Com as crentes, se quisesse, não seria difícil. A confiança, assim como a fé, tem parentesco com a sedução. A maioria daquelas mulheres era casada e muitas recorriam ao pastor em busca de aconselhamento para rusgas conjugais. Não perdiam a oportunidade de embutir insinuações maliciosas nas conversas com ele". Observa-se, nesse trecho, que o narrador denuncia, indiretamente, a hipocrisia do moralismo patriarcal e religioso, outro tema que causa indignação a muitos indivíduos religiosos travestidos de santarrões em nosso país.

Lavínia avançou mais, "o ardiloso Satã havia se apoderado daquele espírito vulnerável e agora se manifestava para tentá-lo". Ernani não resistiu. No outro dia, a moça mudou-se para o hotel e, dois meses depois, foi morar com ele em São Paulo, onde "os dirigentes da igreja faziam grandes planos para o futuro do pastor Ernani. Tinham acabado de obter do governo a concessão de um canal próprio de televisão, uma reivindicação antiga, atendida graças ao empenho em Brasília da bancada que reunia deputados simpatizantes ou ligados à causa da igreja. [...] Pretendiam lançar Ernani como um dos telepastores". Caíra nas graças do bispo, com o qual estivera "em meia dúzia de ocasiões. Numa delas, para celebrar a compra de um lear-jet. O bispo utilizava o aparelho em seus deslocamentos – a igreja mantinha unidades em quase todos os estados da federação". Exatamente aqui, nesse trecho, ficam evidentes dois motivos que devem suscitar ira na denominada bancada evangélica, a qual tem sido uma das bases de sustentação do conservadorismo e do extremismo político de direita em nosso país, num conluio entre políticos e religiosos inescrupulosos para exploração da fé e da ignorância de seus fiéis para enriquecimento pessoal. Há, em nosso país, uma legião de religiosos corruptos e de comunidades religiosas corrompidas.

A terceira parte do enredo, "Postais de Sodoma à luz do primeiro fogo", volta a ser narrada pela personagem protagonista, Cauby, e traz o desfecho dramático desse triângulo amoroso. A saúde mental de Lavínia fica mais abalada ainda quando percebe que o amante se prepara para ir embora. Na despedida, "Lavínia falou: Estou esperando um filho seu, Cauby". Nesse instante, ao receber a pior notícia de seus lindos lábios, ele questiona se o filho é mesmo seu. Ernani "não pode ter filhos, ela disse: Fez vasectomia quando virou pastor". Quando ela sai da casa de Cauby, arrasada, Ernani está ali à frente, à sua espera. Cauby observa que Ernani "estava cansado. Eu e Lavínia também. No fundo, estávamos fartos de tudo aquilo e de ser quem éramos", pois "Somos criaturas do sexto dia, Ernani falava, uma jornada que, se pudesse, o Criador removeria de sua memória absoluta. A desgraça de Deus é não poder esquecer de nada".

Em seguida, Lavínia desaparece. Semanas depois, Cauby recebe a visita de um investigador local, com uma notícia bombástica: "Mataram o pastor Ernani de madrugada, ele informou. Deram três tiros nele. [...] E a mulher tá sumida". A turba de fiéis fanáticos volta-se contra Cauby e faz justiça com as próprias mãos. "Naquela tarde, enquanto um bando de devotos da igreja me apedrejava num terreno baldio nos arrabaldes da cidade, num acampamento no meio do mato eram encontrados os corpos de cinco garimpeiros que andavam sumidos. Tinham sido chacinados. Os parentes e amigos trouxeram os cadáveres para a cidade, exibiram em praça pública. O fedor de decomposição empesteou tudo e perfumou a revolta geral. Houve ataques contra a mineradora, que reagiu com sua matilha de jagunços [...]. Os ataques contra a mineradora recomeçaram e vararam a madrugada. Puseram fogo numa draga. E depois no escritório e nos alojamentos da empresa". Eis a Sodoma amazônica em chamas. Cauby é punido, mas depois é dado como "inocente. Um pistoleiro paraibano detido pela polícia confessara a morte do pastor e implicara a mineradora no crime. Havia tempo acusavam Ernani de insuflar os garimpeiros com suas pregações inflamadas".

A parte final, "Poema escrito com bile", também apresentada pelo narrador autodiegético Cauby, revela o paradeiro de Lavínia. "Por pudor de sua loucura, o pastor a internou num sanatório [...]. Ernani temia que ela afundasse de vez, que fechasse a porta às suas costas. Que tentasse o suicídio. Por isso a internou. Tomou a decisão na manhã em que a recolheu, descalça e surtada, na porta da minha casa". Lavínia "não respondia ao tratamento químico. Então a submeteram a uma sessão de eletrochoque. Ela perdeu o filho. Abortou". Nesse dia, Ernani já estava sepultado.

Eis aqui mais um tema desconcertante para os conservadores de plantão. A internação de uma dependente química em um sanatório pelo pastor remete à realidade de tratamentos muitas vezes inadequados, realizados em instituições denominadas clínicas de reabilitação que seguem mais preceitos religiosos do que conhecimentos científicos e tratamentos médicos, por pessoas as quais consideram distúrbios psíquicos como problemas espirituais, e não como questões de adoecimento mental. Por fim, o aborto é o resultado da violência contra essa mulher, Lavínia, em condições psíquicas as quais a tornavam totalmente indefesa.

Não são apenas cenas de sexo, palavrões e uma plantação de maconha no quintal que escandalizam os "cidadãos de bem" a ponto de demonizarem um livro que sequer leram. Na realidade, o problema maior é que a obra, se lida, pode se transformar em um espelho para muitos deles. Acima de tudo, é por isso que é condenada e demonizada, pelo temor de que se perceba que muitos desses defensores da moral e dos bons costumes não são os "santos" que dizem ser. Assim, se explica por que um romance escrito em 2005 perturba tanto em 2023.

 

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