O dia em que o Minotauro chorou, de Cláudia Roesler, 2023, Editora Metamorfose, é um texto que oferece e entrega muito mais do que aparenta. Não, não estou me referindo à aparência da capa ou de qualquer outra coisa. Estou me referindo a expectativas que por hipótese o leitor venha a ter. Como o título poderia levá-lo a pensar, não se trata de um livro de mitologia. Trata-se sim de um conteúdo ficcional baseado em um mito, embora não se faça imprescindível o seu conhecimento para essa leitura. Ainda assim, inteirar-se do mito grego do Minotauro e o labirinto pode auxiliar.
De modo sumário, eis o mito. Minos, rei de Creta ganhou de Poseidon, deus dos oceanos, um touro do mar. No entanto, em vez de sacrificá-lo ao deus, permaneceu com ele em seus domínios. A vingança de Poseidon a esta desconsideração foi fazer com que Pasífae, esposa de Minos e rainha de Creta, se apaixonasse pelo touro. O fruto dessa relação foi o Minotauro – um monstro com cabeça de touro e corpo de homem. O rei contratou o artífice Dédalo para construir um labirinto onde trancafiar o Minotauro que se alimentava de seres humanos. A fim de nutrir o monstro, Atenas deveria oferecer a cada ano, durante nove anos seguidos sete rapazes e sete moças para alimentar o Minotauro. Por trás da justificativa exigente de Minos, referendada pelo oráculo de Delfos, encontrava-se a supremacia de Creta sobre Atenas, onde havia morrido o filho de Minos. Entretanto, antes de findar esse prazo, o príncipe Teseu, filho do rei de Atenas, vai a Creta, entra no labirinto, mata o Minotauro e consegue de lá evadir-se com o auxílio de Ariadne, filha de Minos, que lhe dá um novelo cujo fio o orienta dentro do labirinto, de volta à intrincada saída.
A nós, leitores do século XXI, pode causar estranheza alguém debruçar-se sobre uma história fantasiosa, criada há tanto tempo, numa Grécia tão diferente da que temos notícia hoje. Contudo lembremos: já se disse que, no mundo ocidental, nada mais é original a partir dos legados da Grécia antiga. É portanto nesse mito que a autora se apoia para construir a sua narrativa, preservando o conteúdo dramático, digno das tragédias gregas.
Sob a perspectiva da literatura, sempre que um texto alude ou conversa com outro, seja ele ficcional ou não, temos o que é chamado de intertextualidade. No presente caso, a meu ver, a obra inscreve-se em um tipo de intertextualidade que “acrescenta ressonâncias à representação da vida contemporânea” como assinala David Lodge ao discorrer sobre esse conceito em “A arte da ficção”, p.107. Em outras palavras: através da intertextualidade a autora, ao resgatar o mito grego nos faz lembrar o que há em nós e na sociedade atual a nos vincular ao passado da humanidade. Situações de conflitos internos e interrelacionais no transcurso da história nos são apresentadas a fim de que possamos, se assim quisermos, confrontar vários aspectos remanescentes nas relações humanas ainda hoje.
O trágico nos mitos gregos reside num destino inescapável ao qual estão sujeitas suas personagens sem se deter a esmiuçar sentimentos provocados por fortes emoções, sem escancarar as devastações que provocam na condição de suas criaturas. É assim que acontece quando um deus engole seus filhos para que não o suplantem enquanto outros praticam o incesto com seus descendentes, entre outras de muitas mazelas da condição humana.
Em “O dia em que o Minotauro chorou” cada uma de seis personagens principais relatam os conflitos da trama a seu modo pois a obra dá voz a uma personagem como narradora em primeira pessoa em cada um dos seus seis capítulos.
Esse destino sem volta, irrefutável, e higienizado pela varredura dos sentimentos nos mitos, sofre na obra da autora uma reviravolta ao acompanharmos capítulo a capítulo, passo a passo, na narrativa de cada personagem, desvelarem-se sentimentos perturbadores. É assim que a autora subverte a tradição da frieza nas narrativas dos mitos, a meu juízo, justo porque não é na ação e sua justificativa (como nas histórias de ação contemporâneas) que ela centra o fulcro do interesse, mas sim ao trazer à tona sentimentos incrustados no interior de cada um dos narradores. Melhor dizendo: o foco não está nos feitos, na ação externa que envolve movimento, ainda que tais agires não nos sejam omitidos. O foco está no que se percebe estar sentindo a personagem narradora e o efeito que nos provoca. O rei Minos, por exemplo, ao chorar, embora escondido, a falta que sente do amor renunciado, deixa-nos suspeitar de uma fresta na sua máscara de arrogância por onde é possível entrever a fragilidade e a solidão que o assolam mesmo estando entre muitos submissos ao seu controle. Por sua vez o Minotauro – condenado à duplicidade do papel de monstro e de vítima das circunstâncias que não escolheu nem acolheu, mas que lhe foram impostas como destino inelutável, ele também, não deixa de extravasar sua dor. Em cada uma das personagens titulares dos demais capítulos a ficção nos aponta sentimentos e desditas perceptíveis e passíveis, talvez, de encontrar em nós mesmos sem que saibamos transformá-los em algo melhor em nós e nos outros.
Finalizando, se Lavoisier tiver razão ao afirmar: “No universo nada se cria, tudo se transforma”, sobre esse conteúdo ficcional de Cláudia Roesler, cabe a afirmativa: No universo nada se cria, tudo se transforma através de um reconto criativo de um passado que parece não ter ficado para traz, mas que nos habita ainda como humanos que somos.
Zilá P. Mesquita é geógrafa. Na literatura, se dedica a livros infantis e gosta de ler contos, romances, ensaios e poesia. Uma geminiana com múltiplos interesses, às vezes dispersivos que levam à indisciplina. Isso atrapalha um pouco e atrai raios imprevistos.