Eu estava na Cidade Baixa, bairro boêmio de Porto
Alegre, comemorando meu aniversário de 40 anos quando uma mulher e um homem se aproximaram. Entre sorrisos, me ofereceram o material do seu trabalho: o Jornal Boca de Rua.
O periódico, totalmente produzido por pessoas em situação de rua, tem impresso nas páginas suas vozes que denunciam, celebram e demonstram sua organização. Nele relatam a crescente luta para sobreviver às dificuldades de conseguir alimento e abrigo, e à violência urbana que tanto os oprime. Único no mundo, o Boca de Rua, em 2023 chegou aos 22 anos. Quando completaram 18 anos, para marcar a maioridade, fizeram o documentário: "De Olhos Abertos". Descobri isso no papo com os Doutores em Ruaologia, que me venderam o jornal naquela noite.
Se ler o Boca de Rua é um puxão nos calcanhares para as múltiplas realidades que coabitam uma cidade grande, assistir o filme é um mergulho profundo sem balão de oxigênio. As quase duas horas de vÃdeo nos submergem em um mundo completamente desconhecido para aqueles que têm sob si, diariamente, um teto e comida na mesa.
Com a sabedoria adquirida na vivência, as personagens reais do documentário expressam suas necessidades, limitações, medos, angustias e esperanças, com a maestria de quem faz malabares para resistir. Sem travas, eles expõem as vÃsceras de uma sociedade preconceituosa, racista, homofóbica, misógina, capacitista e extremamente cruel, a qual eles precisam enfrentar todo dia. E toda noite.
O tema denso é tratado com delicadeza e cuidado. Minuto a minuto o privilégio de ter um endereço fixo e refeições bem servidas nos convidam a repensar nosso modo de ver as pessoas em situação de rua. Diante dos nossos olhos, agora abertos, temos seres humanos sedentos por vida. E organizados para lutar por ela.
Mas foi, depois de uma hora e onze minutos de documentário, que senti meu estômago arder. Josi, uma mulher de 40 anos, descolou meus olhos. Em seu relato, ela descreve um dos muitos abusos sofridos nas ruas. Violência gerada não por seus pares, mas por gente como eu e você, num lugar de Porto Alegre, antes visto como santo para mim: o Tesourinha, ginásio municipal de Porto Alegre. Do alto do meu privilégio branco de classe média, eu que conquistei muitas medalhas naquela quadra, despenquei para dentro de outro universo.
E, daquele ponto em diante, não pude mais deixar de ver.
Percebi que não é nosso papel ser os cavaleiros brancos munidos de assistencialismo, aquele barato que "compra o jornal para ajudar" ou que dá esmolas para tirá-los o mais depressa de suas vistas. Nosso papel é reconhecer que as pessoas em situação de rua são cidadãos e tem o direito ao respeito, ao acolhimento e, principalmente, ao amor.
Numa "guerra não de sangue, mas de diálogo", como eles mesmo apontam, esse grupo organizado, coeso e revolucionário, que compõe o Boca de Rua, nos convida a entrar na sua realidade, a compreendê-los, a abraçá-los como iguais. Eles não querem nossa piedade, querem ser vistos, ouvidos e atendidos. Querem um mundo melhor, não só para si, mas para a cidade e todos que nela habitam.
Vender o Boca de Rua e produzir documentários, é mais do que fonte de renda, é uma das formas mais sublimes de mudança que propõem, porque passa, não pelo embate, mas pela aproximação. E se, eles deram o primeiro passo ao nosso encontro, a outra parte da caminhada somos nós quem devemos fazer.
O Jornal Boca de Rua pode ser adquirido pelas mãos de seus criadores nas ruas de Porto Alegre ou em qualquer parte do mundo pela assinatura da versão online através do
site https://bit.ly/AssineOBoca. O documentário, está disponÃvel no YouTube para quem tiver olhos e coragem de deixá-los abrir.
Vida longa ao Boca.