"A máquina de fazer espanhóis", do escritor angolano-português Valter Hugo Mãe, romance vencedor do Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura em 2012, desenvolve quatro questões paralelas: o isolamento social de pessoas idosas, o conservadorismo remanescente de matriz fascista, o medo da morte e o mistério relacionado a óbitos previsíveis, mas repentinos e suspeitos, de personagens asiladas/exiladas no Lar da Feliz Idade.
Nessa narrativa autodiegética, o narrador e protagonista António Jorge da Silva é um barbeiro de 84 anos que, logo após a morte da esposa, Laura, é internado em um lar de idosos pela filha, Elisa, e pelo genro. Alijado de sua autonomia pessoal, Silva entra em depressão, mas assimila a nova condição, aos poucos, a partir do convívio com outros anciãos que se tornam companheiros dessa jornada final da vida, os quais reconhecerá, posteriormente, como seus únicos e tardios amigos. Entre eles, destaca-se o quase centenário Esteves, o qual afirma ser a própria personagem mencionada na última estrofe do poema "Tabacaria", do heterônimo futurista Álvaro de Campos, de Fernando Pessoa.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calc?as?).
Ah, conhec?o-o; e? o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou a? porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus o? Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperanc?a, e o dono da Tabacaria sorriu.
Com o passar dos dias, esse grupo de homens senis que se unem contra a solidão compartilha uma rotina permeada de pequenas peraltices, manifestações possíveis de revolta contra o confinamento e contra suas próprias debilidades, as quais os fazem parecer pré-adolescentes ou crianças (por exemplo, quebrar pequeninas pombas de gesso aos pés de uma estátua de Nossa Senhora de Fátima, ou proferir obscenidades às senhoras que também vivem no asilo). O narrador António Silva desperta ora empatia, ora estranhamento e desconfiança. Desde o princípio, apresenta-se como narrador-personagem ambíguo e complexo que, em condição de abandono familiar, sensibiliza e comove a leitora ou o leitor, mas também suscita dúvidas e até mesmo repulsa devido a certos pensamentos e atitudes autoritárias e hostis.
As recordações da vida pregressa de António Silva, o qual representa uma geração de tantos outros Silvas (isto é, a sociedade portuguesa durante o longo período de ditadura salazarista), passam a revelar as raízes de suas ideias e comportamentos contraditórios e desconcertantes, os quais estabelecem o contraste entre a fragilidade da condição física na velhice e a potência do autoritarismo remanescente na mentalidade conservadora dessa geração. "O fascismo dos bons homens", expressão que abre a narrativa como título de seu primeiro capítulo, desvenda-se com nitidez, mais adiante, quando o protagonista rememora fatos passados, como as ocorrências do dia em que delatou um ativista revolucionário à PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), órgão repressor da ditadura salazarista. Após essa denúncia, o jovem opositor ao regime torna-se desaparecido político. Silva e boa parte da sociedade portuguesa dessa época justificaram sua conivência e/ou apoio ao regime totalitário pela necessidade de preservação da ordem política e social para garantia do bem-estar e da segurança de famílias e cidadãos "de bem" e, por conseguinte, da própria nação. Por intermédio da narração dessas memórias, a ideologia fascista também emerge no presente, como força propulsora de violência, a ponto de Silva atacar fisicamente uma interna, Marta, enquanto ela dorme. Por consequência de uma segunda e covarde agressão, essa senhora vem a falecer.
A morte, aliás, mais do que receio, passa a ser uma espécie de presença e personagem a circular pelos corredores e quartos do Feliz Idade, em cuja ala direita os aposentos dão vista para pátios externos, ao passo que, na ala esquerda, na qual são acomodados idosos e idosas em situação crítica de saúde, os quartos dão vista para o cemitério. Uma série de mortes suspeitas acontece no asilo, como as que ocorrem por asfixia em um pequeno incêndio (o qual não é o primeiro), ou após aparentes episódios de pequeno mal-estar de algumas personagens, como no falecimento (sem metafísica) de Esteves, durante um ataque de risos em uma consulta com o doutor Bernardo, médico da instituição, exatamente no dia em que o ancião completava seu centenário de vida.
A empatia da leitora ou do leitor com o antes apaixonado e fragilizado narrador protagonista António Silva é rompida do meio ao fim do romance, pois não restam dúvidas de que ele planeja assassinar outros internos, inclusive um de seus amigos, após surtos psicóticos nos quais tem a sensação de ser atacado por abutres. De certa forma, essa atitude de matar por medo de morrer é uma representação do comportamento de adesão ao fascismo, da conduta de parcela de uma população a desejar a morte de outra parcela, para garantir sua própria sobrevivência. O fascismo alimenta o medo e o ódio a partir da construção da ideia de um inimigo comum e fomenta a barbárie a ponto de ser naturalizada como instrumento de depuração social e, paradoxalmente, de promoção do bem comum. As lacunas narrativas permitem também inferir que, alegoricamente, o Lar Feliz Idade mantém um sistema de rodízio e extermínio de pacientes, por meio do qual idosas e idosos falecem para que novas vagas para internações estejam disponíveis.
Em dado momento da narrativa, mesmo quando António Silva parece fazer uma autocrítica sobre sua participação como "cidadão de bem" ou "bom homem fascista" no passado, suas ações homicidas põem por terra a possibilidade de que, de fato, esteja a sofrer uma metanoia, uma transformação de consciência. Ao final, quando se depara com sua inevitável última madrugada, em um leito da ala esquerda, sob a máquina de fazer espanhóis e ao lado do moribundo espanhol Henrique a esbravejar para que morra, tampouco se confirma essa transformação. Na manhã seguinte, no momento preciso das "melhoras da morte", quando a enfermeira se aproxima para atendê-lo e "atenuar" sua intensa angústia, reforça-se a ideia de que o Feliz Idade representa o Estado tanatopolítico totalitarista de conservadorismo extremista em algumas sociedades contemporâneas.
Publicado originalmente em 2010, "A máquina de fazer espanhóis" mantém-se atualíssimo. A população europeia permanece em acelerado processo de envelhecimento, situação que também começa a acontecer no Brasil. Além disso, também é bastante atual por retratar o recrudescimento de ideários fascistas, racistas, misóginos e xenófobos em vários países, na Europa e em outros continentes, também no Brasil. O recente governo autoritário e com viés neofascista, eleito por vias democráticas em 2018, mas frontalmente desrespeitoso à democracia, teve seu ocaso marcado pelos patéticos acampamentos diante de quartéis, nos quais chamava atenção a presença de muitas pessoas idosas a clamarem pela intervenção militar, a apoiarem e promoverem manifestações golpistas e explicitamente inconstitucionais, absurdas e violentas, cujo ápice irrompeu no lamentável 8 de janeiro de 2023, o qual comprovou que há muitos Silvas (entenda-se aqui o nome como metáfora generalizadora de um senso comum de "rebanho") por aí, reunidos em surtos coletivos e descontrolados de ódio e desprezo à vida, capazes de matarem embasados na inconsciência das "certezas" de uma ignorância que beira às raias da loucura. Muitos desses manifestantes do recente e vergonhoso 8 de janeiro eram pessoas idosas, também a quebrarem o que viam pela frente e a proferirem obscenidades, embora se fantasiassem de "defensores da ordem, da moral, dos bons costumes, de Deus, da Pátria, da família" e, também, da liberdade a qual, de fato, propunham aniquilar. Parece só insanidade, mas não é. Na realidade, o nome disso é protofascismo.