Açúcar Queimado é um livro sobre o feminino. Aborda questões tanto sobre a maternidade, quanto hereditariedade e velhice e, mais do que isto, trata a relação mãe e filha e de alguma forma fala de todas nós mulheres.
A autora aborda o conflito de Antara ao se ver com a responsabilidade de cuidar da sua mãe a quem culpa por nunca ter sido capaz de cuidar de si - Antara. Avni Doshi, opta por narrador em primeira pessoa e o faz de forma absolutamente coerente e real. Vale-se de uma linguagem precisa, forte e cortante chegando a nos causar desconforto em alguns momentos. É como se estivesse a nos cravar um punhal no nosso coração.
Não é uma narrativa linear pois não segue uma sequencia lógica, há sim uma descontinuidade apresentada através dos flashbacks de Antara. Passado e presente se encontram no universo psicológico de Antara.
A história é permeada por uma relação bastante conflituosa e carregada de mágoas e rancores, amor e ódio que afetam a convivência e o relacionamento entre duas mulheres - Tara e Antara -, mãe e filha, todavia a autora de alguma forma deixa no interdito o quanto tem de sublime e de amor no gesto de Antara ao tentar resgatar a memória de Tara. Ao fazer isso, revisita as suas próprias memórias e questiona a percepção da menina Antara, possibilitando com esse olhar, uma nova perspectiva para o presente e quiça um amanhã onde as dores e feridas do abandono sejam curadas.
Avni com absoluta maestria descontrói a maternidade tal a conhecemos, idealizada onde temos a mãe num lugar quase divino, de uma santa. Ela desnuda o seu lado sombrio onde comporta o amor e o desamor na mesma proporção e intensidade coabitando numa mesma pessoa deixando claro que isso faz parte de nossas humanidades.
A história se passa em Pune, na Índia, país de cultura tão distinta da nossa cultura ocidental onde talvez o patriarcado tenha sufocado muito mais a mulher, sua escolha e sua voz. É nesse contexto que a história de Antara tem lugar e ela deixa claro a ambilavência de sentimentos que alimenta em relação a sua mãe a quem culpa pela vida que levou em consequência das escolhas de Tara, por exemplo de ter abandonado seu pai, saído de casa e ir viver em ashram com o guru do local, até que ele as mande embora e então passem a viver nas ruas, para novas aventuras e dissabores até serem recolhidas pelo pai que as leva até a casa dos avós.
Em alguns momentos parece que o cordão umbilical ainda não foi cortado ou por outra há uma necessidade de reconexão entre mãe e filha através desse cordão. Não bastasse isso, a autora nos surpreende ao trazer através da protagonista/narradora a experiência de ser mãe e viver conflitos semelhantes aos de sua progenitora passando a entendê-la melhor. Parece que nessa momento a conexão entre as duas começa a ser tecida ainda que de forma tênue ressurge a compreensão e a cumplicidade feminina mesmo que ainda esteja presente o cheiro e o gosto de açúcar queimado.