"Crônica de uma morte anunciada", do escritor colombiano Gabriel GarcÃa Márquez, desperta atenção antes mesmo do inÃcio de sua leitura. O romance, publicado em 1981, ano anterior à outorga do Prêmio Nobel de Literatura ao autor, é denominado crônica, no tÃtulo e, também, na própria indicação do gênero literário na ficha catalográfica da publicação, na qual consta como "crônicas colombianas". De certa forma, tais denominações fazem referência ao gênero textual não só em sua conformação à Literatura, mas também em seu desenvolvimento histórico enquanto narrativa de modalidade informativa no Jornalismo. A narrativa de GarcÃa Márquez caracteriza-se como uma espécie de remontagem investigativa, que se associa, formalmente, a uma reportagem jornalÃstica sobre circunstâncias relacionadas a um crime previsÃvel, a uma morte anunciada. Antes de se dedicar à escrita de ficção literária, Gabo iniciou carreira jornalÃstica como repórter. Daà a obra aproximar-se, em alguns aspectos, das matérias ou reportagens investigativas publicadas nas crônicas policiais. Assim, é possÃvel estabelecer relações entre tÃtulo, classificação e estrutura narrativa da obra com o gênero crônica, embora, por critérios analÃticos, seja um romance.
Gabriel GarcÃa Márquez atiça mais ainda a curiosidade de leitoras e leitores ao abrir a narrativa, inusitadamente, com os detalhes mais impactantes de seu desfecho. Anuncia o assassinato do protagonista em sua primeira frase: "No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se à s 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo". É a denominada prolepse, recurso de criação de dinâmica temporal que antecipa um fato que ocorrerá, que prenuncia o que será narrado adiante. Como foi mencionado antes, é surpreendente (e genial) que a prolepse aponte o destino do protagonista, anuncie a sua morte. Esse inÃcio de narrativa indica, também, que a perspectiva temporal da narração desse fato avançará 27 anos, ou seja, uma elipse ou "salto" no tempo de quase três décadas. A cronologia do dia fatal de Santiago Nasar é apresentada com horários precisos e, para assombro de quem lê, o narrador anuncia que a morte da personagem será brutal: "As muitas pessoas que encontrou desde que saiu de casa à s 6h05m até que foi retalhado como um porco, uma hora depois, lembravam-se dele um pouco sonolento mas de bom humor". Em seguida, são apresentadas descrições e informações detalhadas sobre indumentárias, armas e hábitos cotidianos de Santiago Nasar, as quais configuram uma quebra de ritmo e produzem efeito de prolongamento do tempo, recurso classificado como pausa ou expansão. Essa narração inicial também explora o recurso composicional denominado analepse, a intercalação de fatos em momentos posteriores à sua realização, com estabelecimento de um movimento retrospectivo na dinâmica temporal discursiva, além do recurso denominado sumário, o qual representa uma redução do tempo da história, quando poucas linhas sintetizam fatos ocorridos em longos perÃodos de tempo, sejam dias, semanas, meses, anos ou décadas. É o que ocorre quando o narrador estabelece o presente narrativo ao voltar ao "povoado abandonado, tentando recompor, com tantos estilhaços dispersos, o espelho quebrado da memória". Esses recursos de dinâmica temporal são abundantes em toda a narrativa, e essa representação dos elementos relacionados ao "cronos", ao tempo, também é um fundamento do gênero crônica. É através desses fragmentos de memórias de tempos passados, seus e das demais personagens testemunhas dos acontecimentos relacionados à quele fatÃdico princÃpio de manhã de uma segunda-feira de fevereiro no qual Santiago Nasar foi assassinado, que o narrador anônimo reconstrói o encadeamento de episódios e motivações que suscitaram aquele homicÃdio, cuja possÃvel ocorrência era de conhecimento de quase todos os moradores do povoado, as quais, curiosamente, não atinaram em alertar a vÃtima sobre o risco que corria, vÃtima essa que era uma das únicas pessoas a desconhecer o que se anunciava.
"Crônica de uma morte anunciada" é mais uma obra-prima de Gabriel GarcÃa Márquez, um dos expoentes da Literatura latino-americana, e é impossÃvel abranger toda sua riqueza e genialidade em uma simples resenha crÃtica como esta. O cerne de seu enredo, mais do que a compreensão das circunstâncias que levaram cada personagem a não informar a Santiago Nasar que ele corria risco iminente de morte, é a interpretação sobre sua culpabilidade ou não em relação ao "crime" pelo qual é condenado a morrer. Não convém mencionar qual é essa acusação fatal, para que leitoras e leitores que ainda não leram o romance de Gabo nutram curiosidades e expectativas sobre a trama. Todavia, creio que uma contribuição importante é a observação do código onomástico, ou seja, da escolha dos nomes dados à s personagens pelo autor. Além de sonoros, esses nomes, na minha opinião, possibilitam inferir uma interpretação consistente sobre a possibilidade de que o protagonista era inocente, ou seja, foi assassinado por um ato ou "crime" que não cometeu. Essa leitura é reforçada pelo código onomástico, por essa escolha intencional de nomes que estabelecem relações com personagens, conceitos e valores religiosos cristãos. Destacarei, aqui, apenas as principais referências para essa análise. O protagonista Santiago tem o nome de um dos discÃpulos de Jesus (São Tiago), assim como Pablo (Paulo) e Pedro, os irmãos que o assassinam. O nome da mulher que o acusa, Ângela, tem relação direta com os seres espirituais denominados anjos. A mãe desses irmãos (Pablo, Pedro e Ângela) chama-se Pura, nome que conota virtude. Mais interessante ainda é que esse núcleo de personagens responsáveis pela condenação e assassinato do protagonista constitui a famÃlia Vicário. A etimologia desse vocábulo remete ao termo latino "vicarius", o qual significa substituto. Dele vem o termo vigário (substituto do bispo), assim como a designação do Papa como vigário (vicário) de Cristo, substituto ou representante de Cristo. Também vem dele o conceito da morte vicária de Jesus Cristo, a morte de um inocente em substituição à dos pecadores, a morte de um justo em substituição à condenação de toda a humanidade. Santiago pode ser esse substituto que morreu no lugar e pela culpa de outro. Para complementar essa informação, ao observar a descrição de algumas das agressões fÃsicas sofridas pela vÃtima, as referências a algumas partes do corpo atingidas, perfuradas, compreende-se porque tais referências também permitem estabelecer relações com a morte sacrificial e vicária de Cristo.
Por fim, espero haver despertado, em quem leu esta resenha, seu interesse em ler ou reler essa obra magnÃfica de Gabriel GarcÃa Márquez, para que este texto sobre "Crônica de uma morte anunciada se torne uma "resenha de uma (re)leitura (inesquecÃvel) anunciada".