Tenho ódio de quem diz "Nossa, meu filho dorme a noite toda desde que nasceu.". Ou, ainda pior, "Nossa, não consigo terminar de ler uma historinha para minha filha, ela dorme na segunda página." Meu ódio se justifica por duas razões principais. Primeiro porque é mentira, crianças não dormem. Segundo porque acho um absurdo as pessoas inventarem histórias sobre um assunto tão sério como esse. Minha filha, como qualquer criança real, não dormia. Ela cochilava, em pequenos momentos aleatórios, durante a noite. Mas não dormia! Eu fui redescobrir o que era uma noite inteira de sono quando ela fez cinco ou seis anos. Já não me lembro, pois a essa altura minha memória já tinha ido embora. Vocês não têm ideia do que é privação de sono forçada na vida de uma pessoa. Memória, paciência, energia, coordenação motora, cada uma dessas coisas, em algum momento, abre a porta da casa e diz "Fui, pra mim deu."
Bom, foram muitas as ferramentas para tentar fazer dormir aquela criatura, quero dizer, minha filhota amada, pois o amor nunca deu tchau. Ficou comigo dando força e sugestões "E se a gente fizesse assim?", "E isso aqui, vamos tentar?" Foi o amor quem me sugeriu desistir dos livrinhos infantis e passar para obras maiores. Sim, porque toda noite eu lia a estante inteira de livrinhos esperando que alguma daquelas páginas, alguma palavra falada do jeito certo sob a luz da vigésima oitava estrela ou algo do tipo, faria um milagre e aquela criança de olhos arregalados, curiosa e atenta à história simplesmente dormiria. Nunca aconteceu.
Assim sendo, eu aceitei a sugestão do amor e passei aos livros maiores. Vocês não podem imaginar como isso foi incrÃvel e transformador. Não, a pequena continuou sem dormir, mas, pelo menos, as histórias eram mais interessantes e eu conseguia ler páginas e páginas e páginas sem perder o paladar. Sim, pois a paciência tinha ido embora, lembra?
A estratégia ficou mais sofisticada e passei a escolher livros que tivessem continuações. De preferência três, quatro, sete livros numa mesma coleção. Alguns foram marcantes e fizeram parte de nossas noites durante muito tempo. Harry Potter, li três vezes toda a coleção. As Crônicas de Nárnia, duas vezes. Vários do Monteiro Lobato, o preferido foi Os Doze Trabalhos de Hércules que foi lido três vezes.
Numa dessas noites, o livro escolhido foi A Bússola de Ouro, do Phillip Pullman. Uma história muito interessante que se passa em um mundo parecido com o nosso, mas onde a ciência se torna praticamente proibida e a igreja domina todo o conhecimento. Ela é quem determina o que pode ser estudado, como e por quem. Nesse mundo, a alma das pessoas se manifesta na forma de um animal e é chamada Daemon. A protagonista é Lyra Belacqua, uma menina de doze anos, que é obrigada a sair em uma aventura quando seu melhor amigo desaparece junto com outras crianças. Nessa busca, Lyra enfrenta o mundo onde há ursos de armadura, bruxas e um aletiômetro, um instrumento capaz de mostrar a verdade e o futuro para quem souber interpretá-lo.
A Bússola de Ouro é o primeiro de três livros da coleção Fronteiras do Universo. Foram noites e noites muito divertidas lendo essa série voltada para o público infanto-juvenil e que acerta na escolha da protagonista e na evolução dos acontecimentos. Pullman brinca, de forma muito habilidosa, com a liberação de informações ao longo da história. Diálogos interrompidos de maneira natural, personagens que não se encontram ou param de se falar deixando o leitor tenso e querendo descobrir o que vai acontecer em seguida. Um texto com fluidez e delicadeza que coloca quem o lê dentro da aventura, torcendo pelas personagens e por Lyra.
A trilogia conversa muito bem com o público. Há uma ordem cronológica linear na sequência e Lyra é muito bem construÃda. Ela é uma criança de 12 anos com suas inseguranças, medos e impulsos. Suas caracterÃsticas e suas ações, muitas vezes irresponsáveis, fazem a história avançar com muita emoção e, sempre, levando junto o leitor. Bom, no meu caso, uma leitora miúda que brigava comigo todas as noites: "Só mais uma página, papai!"
Pullman escreveu outros dois livros que se passam no mesmo universo e com as mesmas personagens. São chamados de O Livro das Sombras. A ideia é uma continuação da história, mas apesar de Pullman demonstrar a mesma destreza na construção, ele erra ao mudar tão drasticamente o tempo em que tudo acontece. Um dos livros se passa dez anos antes da trilogia, com Lyra ainda bebê sendo deixada na universidade onde cresceu. O outro, dez anos depois, com Lyra já adulta. Essa diferença de idade criou um distanciamento em relação ao público aqui de casa, especialmente após três livros com a regra do jogo já muito clara. O resultado foi que passei a ouvir "Pai, vamos ler outra coisa?" com alguma frequência e, em uma ocasião, vi um bocejo. Vocês não podem imaginar a emoção. Ficou só no bocejo mesmo, mas foi incrÃvel. Nunca terminamos esse livro.
Hoje, minha filha está com onze anos, lê todas as noites vorazmente. O sono continua sem chegar e, muitas vezes, preciso entrar no quarto e pedir para largar o livro e apagar a luz, pois já, já tem escola. Invariavelmente, ouço "Só mais uma página, papai." O livro da famÃlia, é assim que chamamos a leitura em conjunto, nunca cessou e se tornou realmente coletivo. Eu leio alguns trechos, ela lê outros e a mãe também. Só os gatos é que não leem, mas ficam conosco todas as noites por livros e livros.
Ao longo desses anos voltei a dormir noites inteiras. A coordenação e a energia voltaram, a paciência passa aqui para um café com muita frequência e a memória, bom, a memória deve ter se perdido, pois nunca voltou. O amor, esse nunca desistiu dessa casa. Está sempre atento a qualquer possibilidade de agir e, sem dúvida, aproveitou da pequena insone e transformou-a em uma criança que ama histórias, aventuras, personagens. E, assim vamos, compartilhando narrativas, momentos e bocejos. Sim, hoje eles acontecem.
Alex Ribondi é um pai que aprende com a filha todos os dias. Diretor de Audiovisual e Roteirista. Formado em Comunicação (UnB). Mais de 22 anos de experiência com direção de atores e equipes artÃsticas, animação, videoclipes, efeitos especiais para cinema e propaganda. Como adora fazer projetos para crianças, vem se especializando nos últimos anos. Já dirigiu e criou séries, clipes e curtas e quer, também, escrever livros para essa turma.