Escrever uma resenha sobre o romance A filha primitiva, da escritora cearense Vanessa Passos, foi um desafio que surgiu ao conhecê-la pessoalmente em uma reunião com um grupo de leitoras e leitores. Ao aceitar o convite para conversar sobre o livro, Vanessa despertou-me essa ousada ideia de escrever sobre a obra, pois percebi que não poderia deixar de compartilhar informações e impressões sobre essa leitura e esse encontro. Entretanto, como homem, é muito provável que minha leitura seja incompleta e diferenciada daquelas apresentadas por leitoras que também escreveram sobre o romance. Por sinal, acredito que quase todas as resenhas sobre a obra foram produzidas por mulheres. Também na própria publicação, o posfácio e os comentários sobre a narrativa, como paratextos na orelha e na quarta capa, foram todos escritos por mulheres.
A filha primitiva é o primeiro romance de Vanessa Passos. Produzido com esmero e publicado oficialmente após mais de uma dezena de versões provisórias, a escritora dedicou-se muito para essa grande estreia como romancista, e seu empenho e talento tornaram-na vencedora da sexta edição do Prêmio Kindle de Literatura, no inÃcio de 2022. Essa premiação levou à publicação do livro pela Editora José Olympio.
A autora declarou que o tema principal da narrativa é a violência. Nota-se que a violência é representada em suas manifestações e atravessamentos relacionados à s distinções e desigualdades entre classes sociais, etnias e gêneros em nosso paÃs, as quais atingem, com maior crueldade, os corpos e as existências de mulheres pretas e pobres. Na obra, a dessacralização da maternidade é um dos subtemas relacionados a esse tema, uma vez que a concepção, a gestação, o parto, a amamentação e o papel social de mulher-mãe, muitas vezes, provocam experiências e situações traumáticas de dor e opressão.
A epÃgrafe é a transcrição de um trecho do romance Uma duas, de Eliane Brum, o qual também remete à desromantização da maternidade. Aliás, Vanessa Passos revelou que Eliane Brum, Carola Saavedra e Clarice Lispector são as três escritoras que mais influenciaram essa sua escrita. Uma referência direta à Clarice e a seu conto Felicidade clandestina é apresentada, inclusive, no capÃtulo 32 (p.119). Todavia, a autora também revelou duas informações interessantes: a leitura da BÃblia é uma prática pessoal desde sua infância, e A filha primitiva também estabelece, intencionalmente, intertextualidade com textos bÃblicos. É a partir desse último aspecto que pretendo analisar a narrativa, haja vista não me sentir autorizado, a partir de meu lugar de fala, a comentar sobre questões tão profundas e pertinentes ao universo feminino retratadas no romance.
A leitura das 176 páginas do livro é uma experiência envolvente e intensa. A obra é dividida em três seções, e seus três tÃtulos referem-se à s três personagens centrais: Filha, Mãe e Avó. As seções são constituÃdas por vários capÃtulos curtos, organização que contribui muito para que a leitura da trama apresentada pela narradora e personagem protagonista, a qual é uma filha em busca de identidade e uma mãe que rejeita a maternidade, se torne dinâmica.
Filha, a parte inicial, também é a mais longa. Possui vinte e três capÃtulos. No nono, surge o primeiro trecho que conduz, mais especificamente, à análise a qual me propus realizar. A narradora-personagem apresenta um relato de uma vizinha sobre o perÃodo de gestação de sua mãe (ou seja, sobre quando ela estava na barriga da mãe). Essa mãe solteira, mulher evangélica e preta, mesmo faminta, parecia “cheia de graça”, como Maria, a entoar um hino da Harpa cristã, a louvar enquanto carregava no ventre a filha de um pai oniausente: “Tua mãe, calma, cantando aquele hino que ela gosta, ‘Alvo mais que neveÂ’, passando a mão na cabeça e nunca falando do teu pai. A gente nunca perguntou, nunca teve coragem. Se não falou é porque não tinha o que falar. E você, menina, vê se esquece dessa história de pai” (p.46).
Essa mulher, que busca refúgio na fé para consolação de todas as dificuldades e injustiças da vida, já com mais idade e doente, se apoia nos versÃculos de uma epÃstola para afirmar: “Sou como Paulo de Tarso, minha filha. Essa doença é meu espinho na carne” (p.64). A indignação da filha contra a fé cega materna moldada por uma religiosidade opressora e patriarcal é nitidamente apresentada no seguinte trecho do capÃtulo 20, o qual estabelece referências intertextuais com narrativas bÃblicas.
Providência divina, ela disse. Porque, pra ela, até as desgraças tinham a ver com Deus. Nunca aprendeu a ler nem escrever. Ela escutava as histórias na igreja e repetia pra mim. Depois comprou uma BÃblia e me fazia ler. Lia sobre Jonas, que foi engolido pelo grande peixe. Noé, que preparou a arca. Caim, que por inveja matou o irmão. Mical, que ficou estéril porque zombou do marido. Bom pra ela.
O que realmente duvido é do amor do pai e do filho. Não acredito nesse sentimento genuÃno de um ser que é cem por cento Deus e cem por cento homem e morreu por nós. Um homem? Ah, não! Talvez se fosse Maria, Nossa Senhora, era mais fácil de acreditar.
Não, eu não vou orar pro Filho, pro Pai, muito menos pro EspÃrito Santo. Não, não vou juntar minhas mãos, fechar os olhos e confiar num homem (p.80).
A ausência de diálogo e de afeto entre ambas também se dá como consequência da excessiva religiosidade da mãe, uma vez que a narradora, ao comentar sobre uma fase da vida em que enfrentava uma forte depressão, declara que “Na época era impossÃvel entender direito o que ela queria dizer com aquilo, sempre falava por enigmas. Uma vez perguntei o que era aquilo que dizia enquanto orava e ela me respondeu sorrindo. A lÃngua dos anjos, minha filha. E você entende, mamãe? Ninguém entende, minha filha. Mas edifica” (p.85,86).
Mãe, a parte intermediária da narrativa, possui dezesseis capÃtulos. No primeiro capÃtulo dessa seção, é resolvido um dos dilemas da anterior. A mãe e avó, sob a ameaça da filha contra a vida da neta, confessa o nome do pai ausente e desconhecido, José. O nome é o mesmo do pai adotivo de Jesus. Essa revelação sob pressão estabelece, posteriormente, o nascimento de uma interação entre as duas mulheres. O passado vem à tona e, ao conhecer detalhes antes escondidos sobre a relação entre sua progenitora e o tal José, a narradora percebe que sua mãe “Talvez estivesse gostando de conversar comigo. Afinal, a gente não falava a mesma lÃngua, nossa casa era uma torre de Babel” (p.124).
Avó, parte final, também é a mais curta. Possui apenas quatro capÃtulos. Também já no primeiro desses capÃtulos, a mãe e avó que entoa cânticos de louvor é criticada pela filha e mãe revoltada contra sua religiosidade alienada. A discussão entre elas é permeada pela intertextualidade com versÃculos bÃblicos: “Essa tua religião não serve pra nada. Não cura, não protege, não salva. Cuidado com a lÃngua, minha filha. Da boca procede bênção e maldição, não tropece na palavra” (p.151,152).
Essa religiosidade, campo minado e fonte de conflitos, se torna estopim para que memórias venham à superfÃcie e segredos sejam revelados, para que se rompa o silêncio, vozes contidas e histórias escondidas sejam manifestas, para que a verdade dê à luz uma nova relação entre mãe e filha; e é assim que “O fio que tece essa história, que conduz a narrativa, entrecruza a trama – avó, mãe, filha” (p.166).
Por fim, conforme a escritora e psiquiatra Natalia Timerman afirma no posfácio do livro, se “Para uma mulher, escrever sobre maternidade é um enorme desafio, afinal, no exato instante em que uma mãe está escrevendo, ela não está cuidando de seus filhos. É uma escrita culpada”, para um homem, escrever sobre uma história em que a maternidade é elemento central também é um desafio; afinal, no exato instante em que está escrevendo, ele não está cuidando de seus privilégios. É uma escrita envergonhada. Se este homem cometeu deslizes, ou não devesse ter escrito sobre esse romance, considere-se que ao menos sentiu-se desafiado a pensar. Leu, analisou, tentou. Creio que, de alguma forma, também aprendeu e se transformou. Talvez tenha avançado alguns passos com a obra de Vanessa Passos.