O Jesus de Saramago
 



O Jesus de Saramago

por Elenilto Saldanha Damasceno

Dia 16 de novembro, é comemorado o centenário de nascimento do escritor português José Saramago. Uma das grandes obras desse autor extraordinário é o romance O Evangelho segundo Jesus Cristo, publicado em 1991. Baseada nos relatos bíblicos canônicos e apócrifos, a narrativa literária apresenta uma releitura ou reinterpretação dos textos dos Evangelhos, os quais relatam a vida, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. Saramago, no entanto, explora as lacunas desses textos para criar a sua personagem Jesus Cristo, desde a concepção até a morte por crucificação.

Na obra de Saramago, a infância e a adolescência de Jesus ganham rica representação ficcional. Nota-se que, nos textos dos Evangelhos, são pouquíssimas as referências sobre fatos ocorridos nessas fases da vida de Jesus. O romancista aproveita essa ausência para representar um Jesus totalmente humano, cheio de dúvidas e anseios. A profundidade psicológica com que a personagem vivencia seus conflitos pessoais e familiares revela a crise de identidade de uma criatura essencialmente humana, nada onisciente ou divina.

O Jesus de Saramago vivencia com José, o pai terreno, o mesmo conflito que experimenta com o Pai celestial. Não se reconhece como filho dEste ou daquele, embora seja filho de ambos. Expressa toda a sua humanidade ao oscilar entre a escolha e a predestinação, entre a autonomia e a obediência, entre a revolta e a resignação. Em suma, experimenta, na carne, o que toda criatura humana vive. Ao dialogar diretamente com Deus, o Jesus de Saramago toma conhecimento de uma missão a ser cumprida. Aceita-a não por desejo próprio, mas como uma obrigação. Sente o peso da solidão. Sozinho, busca respostas para compreender essa missão e parece, por vezes, vítima dos caprichos incompreensíveis de Deus. De certa forma, torna-se figura ou antitipo de Jó.

A representação do homem Jesus feita pelo escritor não escandaliza. O esvaziamento total da sua natureza divina enriquece a representação da dimensão da natureza humana em Cristo. Ao final da narrativa, percebe-se que a personagem de Saramago se aproxima mais do Jesus bíblico ao assumir sua missão profética e revolucionária. Contudo, na cruz, prevalece o Jesus humano, solitário e incapaz de compreender e aceitar a razão da sua morte, pela ausência de uma resposta de Deus.

O Jesus de O Evangelho segundo Jesus Cristo é uma impressionante personagem ficcional de uma grande obra literária. Cheio de dúvidas e angústias, como toda pessoa, não é o Jesus bíblico a afirmar-se como a verdade, pois tal enunciação implica certeza, não dúvida. Contudo, tanto a personagem dos Evangelhos quanto a do romance deparam-se com a inaceitação humana, com a resistência que impossibilita a oportunidade de repensar o quanto o Deus da Bíblia se expressa nos seres humanos, o quanto estes refletem a imagem de Deus e o quanto o Verbo divino e o verbo literário revelam as potencialidades de recriação do Logos-Palavra, das relações entre sema e rema e do signo Jesus homem e Deus.

Talvez a razão desse desencontro, conforme o próprio texto de José Saramago declara, seja porque "os homens nasçam com a verdade dentro de si e só não digam porque não acreditam que ela seja a verdade" (p.157).

A resistência anteriormente mencionada, no entanto, não afeta o escritor português declaradamente ateu, mas que demonstra profundo conhecimento sobre os textos bíblicos, principalmente sobre os Evangelhos, na intertextualidade desenvolvida em O Evangelho segundo Jesus Cristo. O autor relaciona várias passagens ou narrativas contidas nos textos religiosos, mas faz poucas referências às parábolas cristãs, aos mitos dentro do mito. A personagem Jesus passa por situações parecidas ou relacionadas ao Cristo dos Evangelhos: realiza milagres, curas, pregações. No entanto, uma das grandes diferenças entre a personagem bíblica e a ficcional é que o Jesus de Saramago não conta parábolas, não narra ou reinventa essas histórias.

No texto literário, a desconsideração das parábolas como gênero textual é apresentada na voz de uma personagem, um velho escriba consultado no templo por Jesus e por outros homens. Essa personagem, a qual representa a tradição judaica, despreza as parábolas.

[...] Também tu vens aqui provocar a ira do Senhor com interpretações diabólicas da sua palavra, interrompeu o escriba, Não, quero apenas que me digas se em verdade pensas que cumprimos a palavra santa quando os estrangeiros o forem, não à terra onde vivemos, mas à religião que professamos, A quem te referes, em particular, A alguns hoje, a muitos no passado, talvez a muitos mais amanhã, Sê claro, por favor, que não posso perder tempo com enigmas nem parábolas [...]. (SARAMAGO, 2005, p.172)

Porém, as parábolas não estão totalmente ausentes na narrativa. Elas são referidas indiretamente, sem serem transcritas ou reapresentadas como as histórias contadas por Jesus. A criatividade de Saramago recupera-as e apresenta-as como elementos constituintes das ações na trama narrativa. Dessa forma, o aspecto autoral das parábolas cristãs, atribuídas a Jesus, dilui-se na narrativa ficcional criada pelo escritor português, na forma de referências episódicas e intertextuais.

Uma dessas referências sugere a diferenciação de dons literários e retóricos entre o carpinteiro José e seu filho Jesus, a qual remete à inferência de que Jesus não herdou esse dom de José e, portanto, não é filho legítimo do carpinteiro, mas sim filho de Deus.

[...] este José [...] sabe discorrer com propriedade e comentar com acerto, mormente se vem a propósito introduzir no discurso alguma imagem ou metáfora relacionadas com o seu ofício, por exemplo, a carpintaria do universo. Porém, porque lhe tivesse faltado na origem o golpe de asa duma imaginação verdadeiramente criadora, nunca na sua breve vida será capaz de produzir parábola que se recorde, dito que merecesse ter ficado na memória das gentes de Nazaré e ser legado aos vindouros [...]. (SARAMAGO, 2005, pp.20-21).

Na conversa entre Deus e Jesus, num barco no meio do Mar da Galileia (ou Lago de Genesaré), o irônico Deus do romance incita seu Filho a falar de forma enigmática, através de parábolas, para suscitar a curiosidade das gentes.

E que deverei eu dizer mais a essa gente, além de injungi-los a um duvidoso arrependimento, se, fartos do teu recado, me virarem as costas, Sim, mandá-los arrependerem-se não creio que seja suficiente, vais ter de recorrer à imaginação, não digas que não a tens, ainda hoje admiro a maneira como conseguiste não me sacrificar o cordeiro, Foi fácil, o animal não tinha nada de que se arrepender, Graciosa resposta, porém sem sentido, mas até isso é bom, há que deixar as pessoas inquietas, duvidosas, levá-las a pensar que se não conseguem compreender, a culpa é só delas, Devo-lhes contar histórias, então, Sim, histórias, parábolas, exemplos morais, mesmo que tenhas de torcer um bocadinho a lei, não te importes, é uma ousadia que as pessoas timoratas sempre apreciam nos outros [...]. (SARAMAGO, 2005, p.314)

A narrativa de Saramago apresenta algumas alusões específicas a parábolas conhecidas dos Evangelhos. A referência à parábola do filho pródigo é feita através do pensamento de Maria, após o conflito ocorrido entre mãe e filho e a primeira partida de Jesus de Nazaré. A intertextualidade é estabelecida através do diálogo entre os textos.

Nessa noite, quando todos na casa dormiam, menos Maria que cismava em como e onde estaria àquela hora o filho, se a salvo num caravançarai, se a coberto duma árvore, se entre as pedras dum barrocal tenebroso, se em poder dos romanos, que o Senhor o não permita, ouviu ela ranger a cancela da rua, e o coração deu-lhe um salto à boca, É Jesus que volta, pensou, a alegria deixou-a, no primeiro momento, paralisada e confusa, Que devo fazer, não queria ir abrir-lhe a porta assim com modos como de triunfadora, Afinal, tanta crueza contra a tua mãe e nem ao menos uma noite aguentaste fora, seria uma humilhação para ele, o mais próprio era ficar quieta e calada, fingir que dormia, deixá-lo entrar, e se ele quiser deitar-se de mansinho na esteira sem dizer, Aqui estou, fingirei amanhã assombro perante o regresso do filho pródigo, que não é por serem breves as ausências que a alegria será menor, afinal a ausência é também uma morte, a única e importante diferença é a esperança. (SARAMAGO, 2005, p.159)

Da mesma forma, quando se reencontram em Jerusalém, Maria e Jesus não se entendem novamente. Uma nova referência à parábola do filho pródigo é apresentada na voz amargurada de Maria a dizer: “Encontrei meu filho e tornei a perdê-lo” (SARAMAGO, 2005, p.211). Já na parábola bíblica, a voz feliz do pai exclama de forma contrária: “Mas era justo alegrarmo-nos e folgarmos, porque este teu irmão estava morto, e reviveu; e tinha-se perdido, e achou-se” (Lucas 17.32). Outra nova referência a essa parábola ocorre quando o próprio Jesus, ao regressar de Betânia para Nazaré, identifica-se como a figura do filho pródigo.

Jesus entregou uma moeda à mãe e disse, Amanhã a cambiarás, então saberemos o seu valor, Decerto me vão perguntar como me entrou tanta riqueza em casa, pois quem uma moeda destas pode mostrar, outras mais terá guardadas, Dizes apenas que o teu filho Jesus voltou da viagem, e que não há riqueza maior que o regresso do filho pródigo. (SARAMAGO, 2005, p.247)

Já as referências à parábola do bom samaritano são feitas através da narração da hospedagem dada a Jesus por uma família samaritana, quando ele se dirige a Jerusalém e a Belém, e do episódio em que o adolescente Jesus é assaltado nessa mesma viagem. A obra reafirma a noção de intertextualidade, segundo a qual o texto literário é uma organização de diálogos entre textos, ou seja, o texto literário tem, dentro de sua estrutura, outros textos.

Jesus gozou do abrigo de um teto nesta sua primeira noite de viajante. O crepúsculo saiu-lhe ao caminho à vista dum pequeno povoado que está logo antes da cidade de Jenin, e a sua sorte, que tão maus anúncios lhe tem andado a prometer e cumprir desde que nasceu, quis, por esta vez, que os moradores da casa onde, sem muita esperança, se apresentou a pedir pousada, fossem de gente compassiva, daquela que levaria o resto da vida com remorsos se deixasse um rapazito como este ao sereno da noite, demais de época tão perturbada de guerras e assaltos, quando por um nada se crucificam almas e se acutilam crianças inocentes. Jesus declarou a seus bondosos hospedeiros que vinha de Nazaré e ia a Jerusalém [...]. Na manhã seguinte, Jesus partilhou da primeira refeição do dia, agradecendo e louvando depois os seus benfeitores com uma compostura tão séria e palavras tão apropriadas que toda a família, sem exceção, se sentiu, por momentos, como participando da inefável paz do Senhor, não obstante não passarem todos eles de uns desconsiderados samaritanos. (SARAMAGO, 2005, p.162)

As portas a que Jesus foi bater não voltaram a abrir-se e o remédio do viajante foi dormir por aí, sozinho, uma vez, debaixo duma figueira, dessas largas e rasteirinhas como uma saia rodada, outra vez protegido por uma caravana a que se juntara e que, estando cheio o caravançarai próximo, tivera, felizmente para Jesus, de assentar o arraial em campo aberto. Dissemos felizmente porque, neste meio-tempo, quando escoteiro atravessava uns desertos montes, foi o pobre pequeno assaltado por dois maleantes, cobardes e sem perdão, que lhe roubaram o pouco dinheiro que tinha, sendo portanto causa de não poder acolher-se Jesus à segurança das estalagens, as quais, segundo as leis de um são comércio, não dão ponto sem nó nem teto sem pago. Lástima foi, se lá estivesse alguém para apiedar-se, olhar o desamparo do pobrezinho quando os ladrões se foram, ainda a rir-se dele, com todo aquele céu por cima e as montanhas cercando, o infinito universo desprovido de significação moral, povoado de estrelas, ladrões e crucificadores. (SARAMAGO, 2005, p.163)

A referência à parábola das dez virgens é feita como narração e comentário dos costumes judaicos nas cerimônias matrimoniais, os quais antecedem o relato do milagre realizado nas bodas em Canaã da Galileia, quando Jesus transforma água em excelente vinho.

José e Lídia ficaram no pátio, de brincadeira com os da sua idade, os meninos jogando com os meninos, as meninas dançando com as meninas, até ao momento em que deram fé de que a cerimônia começava. Correram todos, agora sem maior discriminação dos sexos, atrás dos homens que acompanhavam o noivo, os amigos dele, que levavam os archotes da tradição, e isto numa manhã como esta, de tão resplandecente luz, o que, pelo menos, poderá servir para demonstrar que uma luzinha mais, mesmo de archote, nunca é de desprezar, por muito que brilhe o sol. Os vizinhos, com alegria semblante, apareciam a saudar às portas, guardando as bênçãos para daqui a pouco, quando o cortejo regressar trazendo já a noiva. Não chegaram José e Lídia, porém, a ver o resto, de todo o modo nunca seria novidade completa para eles, porquanto haviam tido em seu tempo um casamento na família, o noivo a bater à porta e a pedir para ver a noiva, ela a aparecer rodeada das suas amigas, também estas com luzes, ainda que modestas, simples lamparinas como a mulheres convém, que um archote é coisa de homem pelo fogo e pela dimensão, e depois o noivo a levantar o véu da noiva e a dar um grito de júbilo perante o tesouro que tinha encontrado, como se nestes últimos doze meses, que tantos eram os que o noivado durava, não a tivesse visto mil vezes e com ela ido para a cama quantas lhe apeteceu. (SARAMAGO, 2005, p.285)

Por fim, a referência à parábola do trigo e do joio apresenta-se na voz do sumo sacerdote do templo, quando repreende a Jesus e a seus discípulos ao confrontarem os guardas e os vendilhões do templo.

Acudiram mais guardas, estes de espada e lança, aos quais foram juntar-se um que outro cambista e vendedor de pombas, resolvidos a não deixarem só em mãos alheias a defesa dos seus interesses, e a sorte das armas, aos poucos, começou a virar, que se esta luta, como nas cruzadas, a queria Deus, não parecia que pusesse nela o mesmo empenho bastante para que a vencessem os seus. Nisto estávamos, quando no alto da escadaria apareceu o sumo sacerdote, acompanhado dos seus pares e dos anciãos e escribas que fora possível chamar à pressa, e deu uma voz que em nada ficou a dever àquela de Jesus, disse ele, Deixai-o ir desta vez, que, se voltar cá, então o cortaremos e lançaremos fora, como ao joio quando está em excesso na seara e ameaça afogar o trigo. (SARAMAGO, 2005, p.358)

Percebe-se que, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, as parábolas cristãs são reapresentadas indiretamente, através de referências específicas em outros contextos narrativos. As relações intertextuais entre parábolas e romance dão-se não como transcrições ou paráfrases, mas como paródias com aspectos inovadores no universo diegético da obra: como citações, pensamentos, lembranças e até desavenças nas vozes de outras personagens, como Maria e o sumo sacerdote do templo.

O escritor constrói a ideia de que, a partir de experiências vividas, o Jesus bíblico possa ter se inspirado para criar e contar suas parábolas. O recurso de reapresentá-las de uma forma diferente enriquece a intertextualidade e o valor literário desse interessante romance de José Saramago. Numa obra representativa da literatura universal contemporânea, narrativa literária e Bíblia integram-se, com sutileza e sensibilidade, também através das parábolas, as histórias que Jesus contava, recontadas na história de Saramago.

 

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