Luto de gente viva
 



Luto de gente viva

por Marta Leiria

Uma das modas contemporâneas que parece que vieram para ficar é a de aderir, e repetir ad nauseam, expressões inseridas em frases prontas. São tantas! Cultura do estupro, do cancelamento, masculinidade tóxica. Uma delas preconiza o desapego de coisas, até de gente. Ora, é claro que de objetos que já cumpriram seu papel precisamos, sim, nos livrar, como tão bem nos ensina Marie Kondo. Mas quem se dispõe a encarar com verdade seus próprios demônios sabe que luto de gente viva é das experiências humanas mais difíceis de superar. Falo de pessoas que amamos. Familiares, amigos. A ponto de chorarmos de saudade do que um dia foi.

A leitura de Jordan Peterson pode abrir as fronteiras do pensamento sobre o tema. Em suas “12 regras para a vida, um antídoto para o caos”, que, já adianto, de autoajuda não tem nada, propõe algumas regras fundamentais para lidarmos com o caos. Psicólogo clínico, ele as fundamenta em narrativas bíblicas (não precisa ser religioso para reconhecer a sabedoria das histórias ali contidas), na Mitologia, Filosofia, Literatura. E em sua experiência em consultório, sala de aula, palestras.

Pessoas com alguma estrada e não autoiludidas sabem muito bem que o caos está sempre à espreita, por mais felizes, saudáveis e sortudas que estejamos no momento. Para os que não conhecem o notável pensador, e antes de comprar o livro, sugiro que assistam a seus vídeos nas redes sociais. O que me levou a querer urgentemente lê-lo foi o seguinte questionamento sobre o que é mais importante, o direito de expressão ou o direito de não se sentir ofendido (em minhas palavras): se estou falando com uma única pessoa é bem provável que eu possa tratar sobre algo difícil e controverso sem ofendê-la. Se falo para dez, talvez eu consiga, mas é um pouco difícil que ninguém se sinta ofendido com minhas palavras. Agora, para uma plateia de mil pessoas, isso é impossível. O simples fato de eu afirmar o que é verdade para mim ofenderá outras pessoas. Até mesmo o fato de eu existir. Então eu não posso dizer nada para que ninguém se sinta ofendido. É um critério impossível. E o que isso tem a ver com luto de pessoa viva? Tudo.

Há verdades talvez insuportáveis que precisamos dizer sob pena de abdicarmos de nós mesmos. Há outras, que pessoas precisam nos dizer. Se, a qualquer das partes, diante da precária condição humana, faltar tato, elegância, paciência, as consequências virão. Algumas relações fraternas talvez se rompam sem volta. E os laços antes tão íntimos se transformem em cumprimentos protocolares. Triste demais. Talvez se formos verdadeiros com essas pessoas tão caras a nós, possamos perguntar o que houve, e, se for o caso, pedir desculpas. Talvez não adiante nada. Talvez a dúvida sobre o que causou a ruptura nos acompanhe para sempre. Uma das regras de Jordan é: diga a verdade. Ou, pelo menos, não minta. Outra: seja amigo de pessoas que queiram o melhor para você, não de quem você gosta. Uma terceira: cuide de você como cuidaria de alguém sob sua responsabilidade.

Dia desses eu tentava descobrir, sem trapacear comigo mesma, sobre as causas de algumas rupturas. Talvez eu as tivesse ofendido e pudesse pedir desculpas. Talvez não adiantasse nada. Eis que o acaso me fez ler um texto excelente de colega sobre o Sete de Setembro e enviei a uma pessoa de quem gosto muitíssimo. Sempre falávamos com deliciosa franqueza, trocávamos ideias sobre o trabalho, livros, assuntos controversos e difíceis, e com quem convivi muitos anos no Ministério Público. Disse que andava lembrando dela com saudade. Ela me disse (é dessas pessoas que não têm o hábito de mentir) que pensa em mim quase que diariamente. Como não chorar de emoção? Foi um verdadeiro antídoto contra o caos em que me encontrava ruminando sobre minhas tristes rupturas.

 

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