O homem invisível e o grande irmão, entre alguns outros de seu tempo
 



O homem invisível e o grande irmão, entre alguns outros de seu tempo

por Alexandre F. Beluco

Ao longo do último século e meio, algumas narrativas tornaram-se notáveis lidando com governos extremamente autoritários e com movimentos de oposição a esses governos. A importância dessas narrativas é incontestável, e alguns de seus detalhes podem ser muito interessantes. Um exemplo é o livro Nós, de Ievgueni Zamiatin, publicado em 1924, escrito em uma época em que os meios tecnológicos eram reduzidos e, por isso, inclui edificações com paredes transparentes como um modo para controlar os cidadãos.

Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, publicado em 1932, pode ser considerado uma referência entre futuros distópicos. Em um futuro distante, a sociedade humana aparece dividida em castas, e algumas ferramentas eram utilizadas para garantir que todos os indivíduos pudessem ser felizes. Essas ferramentas consistiam em desenvolvimentos científicos e incluíam métodos para o controle psicológico e emocional da população.

1984, de George Orwell, publicado em 1949, é certamente outra referência entre futuros distópicos. Um governo central (ou na verdade, um partido) havia criado a figura do Grande Irmão, que sabia de tudo, controlava a todos e que trabalhava para manter o poder de seu partido. Diferentemente de Admirável Mundo Novo, no qual as pessoas deveriam ser felizes, aqui o partido abertamente busca manter-se no poder.

Esse livro estabeleceu alguns conceitos, utilizados ao longo da narrativa, como o crime de pensamento e o 2+2=5, entre outros. O crime de pensamento é uma evidente forma de tentar controlar o pensamento dos cidadãos, além de já controlar ações e declarações, estabelecendo pensamentos que seriam taxados como criminosos. O 2+2=5 é uma equação com resultado evidentemente errado e que era disseminada muitas vezes pelo governo, mostrando como novos dogmas seriam criados e as opiniões, manipuladas.

Do mesmo autor também temos A Revolução dos Bichos, de 1945. É uma sátira na qual os animais de uma fazenda iniciam uma revolução para se verem livres dos humanos e estabelecer uma sociedade, em seu ponto de vista, melhor. Um dos líderes, entretanto, é seduzido pelo poder e estabelece uma ditadura. O resultado é que a nova ordem das coisas se mostra tão corrupta quanto a sociedade anterior, liderada pelos humanos.

Tendo citado a revolução dos bichos, fica inevitável não lembrar d’A Ilha do Doutor Moreau. H.G. Wells lançou esse livro em 1896 e conta a história de um cientista (o doutor Moreau) que havia desenvolvido experimentos científicos relacionados com vivissecção em uma ilha isolada. Os resultados desses experimentos, os seres vivos sobreviventes, portavam níveis diferentes de inteligência e viviam em uma sociedade que temia e idolatrava o doutor Moreau como uma divindade. Ao final, uma sucessão de acontecimentos insólitos relaciona-dos com um visitante humano desencadeou uma revolta e o assassinato do doutor Moreau.

Uma disputa teria ocorrido no início do século XX, na qual Joseph Conrad teria sido acusado de escrever Coração das Trevas com forte (ou excessiva) inspiração n’A ilha do doutor Moreau. Coração das Trevas descreve a viagem de um capitão em busca de um desertor de sua companhia marítima. Nessa viagem, ele percorre uma região do Congo Belga imersa em barbárie. Sem entrar no mérito do conflito entre os dois autores, basta lembrar que o primeiro é considerado um dos cânones da literatura inglesa, enquanto o outro (mesmo sendo um clássico da ficção científica) hoje integra listas de romances infantojuvenis.

Já Nós, do russo Ievgueni Zamiatin, conta a história de um futuro no qual as pessoas não têm nomes, mas denominações alfanuméricas. Os cidadãos são educados a viver suas vidas sem questionar seu sentido e, entre outras coisas, experimentam encontros amorosos agendados pelo Estado. Um deles decide questionar o sistema e acaba por ser condenado à morte (mas não é vencido, porque sua amante, grávida, consegue fugir).

Uma narrativa que se encaixa de modo interessante nessa linha de raciocínio é O Homem Invisível, de H.G. Wells, publicado em 1897. Nesse livro, um cientista desenvolve uma droga que altera as características óticas de seu corpo e permite que ele se torne invisível. É um livro clássico de ficção científica e que naturalmente parte de premissas falsas, mas que permite “brincar” com a ideia de invisibilidade.

Algumas perguntas, então, surgem: se muitas vezes alguns avanços da ciência são previamente discutidos na ficção, corremos o risco de em breve encontrarmos homens de fato invisíveis na vida cotidiana? E se tivermos mesmo homens invisíveis caminhando por aí, os governos não terão enfim encontrado um meio muito eficiente para dominar definitivamente as pessoas, limitando-lhes a liberdade de expressão?

Este artigo não esgota o assunto, já que vários outros autores, mesmo antes dessas obras que foram citadas acima e também depois, criaram narrativas distópicas sobre futuros ou mesmo situações presentes que se afastavam de uma realidade que poderia ser considerada adequada pela maioria das pessoas.

É interessante observar como alguns elementos dessas obras alertam para o modo como pequenos detalhes, alguns deles até permanentemente espalhados por aí, que muitas vezes parecem menores ou mesmo improváveis, podem acontecer e abrir caminho para desdobramentos futuros desproporcionais e indesejados.

Nós certamente não teremos homens invisíveis, mas quantos não temerão (em segredo, à noite) serem vigiados por um deles? Dois e dois são quatro, todos sabemos, mas quantos não acreditariam que de fato (após um “bom argumento”) dois e dois resultam em cinco?


Este texto é parte do livro Energias renováveis, velharias clássicas e outras obsessões positivas, a ser publicado em 2021 pela editora Metamorfose.

Doutor em Engenharia, Engenheiro Civil e bacharel em Física, atuando como professor da UFRGS há mais de duas décadas, inicialmente com disciplinas sobre Mecânica de Fluidos e Hidráulica e, mais recentemente, assumindo cursos sobre Métodos de Projeto. Como pesquisador, é bolsista do CNPq em energias renováveis, com dezenas de artigos publicados em periódicos especializados. Suas contribuições sobre complementaridade energética levaram a um convite da Elsevier e da Academic Press para que organizasse um livro sobre o tema, com lançamento previsto para fevereiro de 2022. Sempre cultivou o hábito da leitura, em vários momentos da vida quase uma obsessão. Também conviveu com um instinto permanente por escrever, bastante exercitado por circunstâncias profissionais. Em 2020, ingressou no Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose e está lançando na primavera de 2021 seu primeiro livro. É uma coletânea de crônicas lidando com temas desde assuntos do trabalho até questões relacionadas com carros antigos, progresso tecnológico, ficção científica, entre outros.

 

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