O mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov foi indicado por uma amiga, cujos sentidos literários muito admiro. À indicação e ao abraço seguiram as seguintes palavras: “estou lendo um livro de que, acho, você vai gostar”. Para mim foi como receber um daqueles presente que os amigos acham “a sua cara”. Sempre que isso acontece, não há como: é preciso descobrir a razão da identificação. Eu, pelo menos, não sosseguei enquanto não descobri por que O mestre e Margarida poderia cair no meu gosto.
Foi uma leitura difÃcil, tenho que admitir. Há muitas histórias entrelaçadas e imbricadas, além de uma história incrÃvel dentro de outra, ainda mais espetacular. É monumental, mas pode ser alucinante, fora dos parâmetros "normais" de um romance ou da própria realidade. Apesar disso, acho que há uma relação entre a história inventada por Bulgákov e o cenário polÃtico e social em que a escreveu e em que se desenvolveu: a União Soviética da década de 1930, que também devia ser um experimento polÃtico monumental e alucinante. É nesse contexto que surge nada mais nada menos que Satanás, em plena Moscou stalinista. No meio de uma conversa entre Berlioz, presidente da Massolit, uma espécie de academia popular de letras russa, e Bezdômny, um jovem poeta. Nessa conversa, discutiam com um forte tom ateÃsta, tÃpico daquela sociedade naquele tempo, o trabalho do poeta sobre Jesus Cristo a ser publicado por Berlioz. Em Patriarchi Prudý, um lugar que reflete a arquitetura e a sociedade daqueles anos --- um conjunto de prédios funcionais soviéticos que circundam um lago quadrado ---, Satanás surge, para provar sua existência. Após essa aparição, Berlioz perde sua cabeça, defendendo seus princÃpios filosóficos até o fim.
Berlioz, atropelado e decapitado por um bonde, é substituÃdo, em seu apartamento comunal, por Woland, que se apresenta como especialista em magia negra, o próprio diabo, e por seus comparsas: um fabuloso gato preto de proporções humanas, Behemoth; um homem sempre vestido de xadrez e portando um pincenê rachado, Korôviev; um outro homenzinho ruivo e sanguinário, Azazello; e sua ajudante, cozinheira e faz tudo, Hella. A partir daà a trupe fantástica, invencÃvel e inverossÃmil entra na vida de diversas pessoas, rompendo padrões e despedaçando crenças, enlouquecendo a todos que encontra. Com a notável exceção de Margarida, companheira de um escritor que não pôde suportar a crÃtica a seu manuscrito sobre Pôncio Pilatos, e que se interna numa clÃnica psiquiátrica --- que, aliás, receberá a maioria das vÃtimas do diabo. Margarida parece estar acima das convenções e à frente de seu próprio tempo, não se deixa julgar, nem abalar por quaisquer crÃticas e está disposta a abandonar uma escolha mal-feita, para ser feliz ao lado do tal escritor a quem chama de mestre. Não é por outra razão que o mestre satânico a escolhe para ser a rainha de seu baile anual.
Como disse, a leitura não foi daquelas de uma semana. Tive que começar e recomeçar o livro: era imperioso descobrir por que o livro se parecia comigo. A tradução, ao que parece porque não sei russo, não ajuda muito. Deixa a leitura truncada, sem continuidade. Ontem, no entanto, cheguei ao fim do livro, completamente extasiada. Como é sutil a sátira à queles tempos e aos costumes de então, a crÃtica à sociedade estruturada em milhões de departamentos e sustentada sob muita vigilância. A mesquinhez e a estreiteza de visão individual, que conviviam com princÃpios polÃticos e sociais tao universais, é um paradoxo perceptÃvel, mas nunca apontado. Todo o pensamento convencional dos personagens, aliás, pode ser a causa de tanta loucura desencadeada após o encontro com o diabo. O inverossÃmil concretiza-se diante dos olhos, contra todas as probabilidades, crenças ou diretrizes.
Li um pouco sobre a vida de Bulgakóv e, claro, é extraordinária. Formou-se em medicina e voluntariou-se como médico da Cruz Vermelha, durante a Primeira Guerra Mundial. Durante a guerra, foi gravemente ferido e, a partir daÃ, para suprimir as dores lancinantes, passou a injetar doses cada vez maiores de morfina. Esse hábito tornou-se vÃcio, e as tentativas de abandoná-lo inspiraram o livro Morphine, de 1926. Casou-se três vezes. Sua última esposa (foto abaixo), com quem se estabeleceu em Patriarchi Prudy, influenciou o personagem de Margarida. Sua carreira literária iniciou-se pelo jornalismo, passou pela ficção cientÃfica, chegando a sátira social. Apesar de sua obra ter sido submetida ao escrutÃnio do estado soviético e só ter sido publicada na Ãntegra em 2007, Stalin era admirador de um de seus livros The Days of the Turbins, sobre sua experiência na Grande Guerra. Stalin expressou pessoalmente essa admiração e conseguiu que Bulgákov fosse empregado num pequeno teatro de Moscou, talvez para contrabalancear a proibição de que fosse publicado e a consequente penúria imposta ao autor. E foi esse emprego que garantiu sua sobrevivência e a possibilidade de concluir O Mestre e Margarida, em 9 anos (de 1929 a 1938).
Ao final de O mestre e Margarida estava assoberbada pela leitura, realmente incrÃvel. Um delÃrio alucinante e denso que tem despertado a paixão de muitos na Rússia --- é o romance preferido de jovens leitores russos --- e fora do paÃs. Salman Rushdie afirmou que O Mestre e Margarida foi uma das inspirações para Versos Satânicos. Mick Jagger, igualmente, deixou registrado que o romance de Bulgákov também inspriou Sympathy for the Devil. Também soube daquela mesma amiga, a quem agradeço muito o presente, que o apartamento número 50, onde Satanás instalou-se durante sua estadia em Moscou, na Sadovânia 302-bis, virou local de idolatria, peregrinação e performances. Quero ler o livro outras tantas vezes e finalmente visitar Moscou e o apartamento número 50.