O pai da dor de cotovelo
por Solon Saldanha
Ele nasceu no bairro da Ilhota, em Porto Alegre – o lugar ficava próximo de onde hoje existe o Ginásio Tesourinha –, sendo o primogênito de um casal que teve nada menos do que 18 filhos. O pai trabalhava na Escola de Comércio, antigo nome da atual Faculdade de Economia da UFRGS. Com tantas bocas para alimentar, óbvio que viviam de forma modesta, mas não chegavam a passar necessidades maiores. Quando chegou nos primeiros anos da escola, prestava menos atenção nas aulas do que o tempo gasto cantarolando na sala ou se envolvendo em brigas. No turno inverso, jogava bola com outros meninos do bairro. Ainda adolescente, ingressou na Carris como aprendiz nas oficinas. Logo depois já estava compondo marchas para blocos carnavalescos e passou a beber e cantar até altas horas, em geral no bar do Seu Belarmino. Foi quando o pai, Francisco Rodrigues, sempre zeloso, resolveu acabar com aquilo e o alistou no Exército, como “voluntário”. Deste modo Dona Abigail, sua mãe, passou a ver o filho apenas esporadicamente, fardado e de cabelo curto, entre 1931 e 1935. Isso porque serviu primeiro em Porto Alegre e depois foi transferido para Santa Maria. Mas nem no quartel se afastou de fato da vida boêmia: o praça logo formou um grupo que passava a noite tocando e cantando sambas, o que custava uma sonolência sem igual nos dias seguintes, resultando em sonecas escondidas pelos cantos, fugindo do serviço. Aliás, foi nessa época que acabou compondo alguns dos seus sucessos.
Falei até agora de LupicÃnio Rodrigues, sem dúvida um dos maiores nomes da música brasileira. Ele foi uma figura complexa e interessante, sendo apontado por muitos crÃticos como o inventor da dor de cotovelo – expressão surgida porque as desilusões amorosas eram “bebidas” nos bares, com cotovelos apoiados sobre suas mesas –, mas bem diferente daquilo que hoje chamam de “sofrência”. A primeira é verdadeira, melancólica e quase poética. Nenhum destes adjetivos caem com a mesma naturalidade sobre a outra, na minha opinião. No caso especÃfico de LupicÃnio, a causa de muita inspiração foi o rompimento do noivado com Iná, sua grande paixão da juventude, que cansara da vida boêmia do parceiro. Isso ocorreu em 1939, depois dele passar quatro anos como bedel na Faculdade de Direito, após a baixa no Exército. Então, decidiu seguir para o Rio de Janeiro, onde passou uma temporada inteira e se tornou frequentador assÃduo do bairro da Lapa e do seu Café Nice. Foi onde conheceu Ataulfo Alves, entre outras lendas. De Francisco Alves ficou muito amigo e tornou-se um dos principais intérpretes.
Em 1947 acabou aposentado por motivo de doença. Então abriu uma churrascaria, de nome Jardim da Saudade, mas que ficou conhecida mesmo como Galpão do Lupi. Foi sua primeira incursão como dono de outros tantos bares e restaurantes, todos falidos pela sua incapacidade administrativa. Casou em 1949 com Cerenita Quevedo Azevedo, com quem adotou filha que ele tivera antes de conhecê-la e que ficara órfã de mãe. Com a esposa teve um filho. A vida noturna nunca terminou, mas havia uma peculiaridade bem estranha: recebia alforria da famÃlia para sair apenas de segunda até sexta, tendo que retornar no máximo até à s quatro da madrugada. Nos finais de semana era absolutamente caseiro.
LupicÃnio foi o autor de preciosidades como Se Acaso Você Chegasse, Nervos de Aço, Vingança, Nunca, Esses Moços (Pobres Moços), Felicidade e Cadeira Vazia, para citar apenas sete. O total ultrapassa 600 canções, segundo estimativas, com pelo menos 150 delas tendo sido gravadas. E há ainda uma ligação sua, associando o esporte que mais amava com seu talento como compositor. Seu pai era jogador do Riograndense, time de futebol que fazia parte da conhecida Liga da Canela Preta. Certa ocasião eles tentaram disputar o campeonato da cidade, mas foram vetados pelo Internacional. Esse fato aumentou o amor que LupicÃnio ainda menino tinha pelo Grêmio. Terminou sendo o compositor do hino que o clube adotou como definitivo – já tivera dois outros diferentes antes – quando do seu cinquentenário, em 1953. Fora o tricolor gaúcho, ao que se saiba apenas os times do Rio de Janeiro têm o privilégio de possuir hinos compostos por outra “grife” da nossa música. Lamartine Babo compôs os de 11 times cariocas: Flamengo, Fluminense, Vasco da Gama, Botafogo, América, Bangu, Madureira, São Cristóvão, Bonsucesso, Olaria e Canto do Rio. Ou seja, todos os que disputavam o campeonato na época. Fez isso a partir de uma proposta apresentada pela imprensa, não sendo fruto de uma relação apaixonada, como a de Lupi e o clube porto-alegrense.
Nos anos 1960, com o surgimento da Bossa Nova e da Jovem Guarda, LupicÃnio e outros compositores do mesmo gênero caÃram no ostracismo. Seu tipo de música despencou no gosto popular. O que voltou a dar para ele uma necessária vitrine foi quase obra do acaso: Caetano Veloso veio fazer show em Porto Alegre em 1970 e, ainda maquiado e com roupas muito coloridas, resolveu estender a noite num bar da cidade. Foi recebido com muita estranheza e pouca boa vontade, pelos frequentadores. Menos por LupicÃnio, que estava presente e o acolheu. Ficaram toda a madrugada conversando e cantando. O baiano se encantou com as letras de Lupi e pediu para gravar Felicidade. Foi um marco que explodiu nas paradas. Então ele passou a ser gravado também por Maria Bethânia, Gal Costa, Elis Regina, Elza Soares e Jamelão, entre outros. Morreu quatro anos mais tarde, outra vez no auge, vitimado por um ataque cardÃaco. Seu retrato está na Galeria dos Gremistas Imortais, no salão nobre do clube. E em 4 de novembro de 2014 a Câmara Municipal lhe concedeu o tÃtulo in memoriam de Cidadão Emérito de Porto Alegre.
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