Tempos atrás, em uma oficina dos Diálogos Contemporâneos - uma série de discussões organizada em 2017 pelo Guto Leite e outras pessoas interessadas em boas trocas -, o Paulo Scott comentou sobre uma amiga que ele considerava ter muito talento para escrever mas que estava preferindo dedicar tempo à leitura ao invés da escrita. Se bem me recordo, a premissa dela abarcava da ânsia de comparar o tempo de vida versus o volume de obras fabulosas para ler. De outro lado, tinha a impressão de que tudo já havia sido contado e de muitas formas - algumas tão boas que talvez dispensassem o esforço de uma nova tentativa.
Naquela época, e talvez ainda agora, eu sinta algo parecido com isso, com a minha indisciplina para manter uma rotina de escrita e o aumento nas demandas do trampo que banca minha existência (e do qual tenho a sorte de gostar muito). Em suma, não tenho produzido ficção, exceto por pressões e demandas pontuais, mas o fato é que escrever (para além da rotina associada ao trabalho, onde essa habilidade é um diferencial importante) continuou sendo uma necessidade latente.
Necessidade esta que, com o momento peculiar que vivemos, se acirrou. Não me refiro aqui à necessidade de usar a escrita como forma de ordenar os pensamentos, com função de assegurar alguma sanidade em meio ao caos que atravessamos, embora reconheça e louve esse papel. Penso mais naquele efeito da arte de tornar possÃvel uma existência. Seja pelo desalento com os espetáculos diários de vileza polÃtico-social que assistimos, ou protagonizamos, seja pelo medo da vulnerabilidade que a pandemia tornou evidente (mas sempre esteve aqui), escrever pode ser a única arma legÃtima e possÃvel para a sobrevivência e transformação.
Tenho visto provocações para quem é da escrita se lançar à sua ocupação - um certame de contos, oficinas online e grupos para discutir textos pipocam aqui e acolá. Tudo isso vem ecoando em mim e certamente em muitos que escreveram, escrevem ou desejam escrever. Venho aqui atiçar essa (auto) provocação para que nos lancemos, sim, a fazer uso das palavras para moldar a interferência em uma realidade que nos incomoda já para além do suportável. Quem iremos? Onde nos "ciberencontramos" para retroalimentar esse motor que pode se somar a outros na movimentação dos que querem outro rumo?