Resenha do livro “As Alegrias da Maternidade”, de Buchi Emecheta
 



Resenha do livro “As Alegrias da Maternidade”, de Buchi Emecheta

por Aletheia de Almeida e Camile Mesquita

Meu encontro com Buchi Emecheta e o seu “Alegrias da Maternidade” foi adiado por quase um ano. Deixei-o na estante, como um vinho caro, esperando o momento certo de amadurecimento. Toda vez que ia buscar uma nova leitura, passava as mãos sobre ele, mas nunca o puxava. Até que o escolhi como livro de férias, o último do ano de 2019. Foi surpreendente e arrebatador. Tanto que não consegui escrever de imediato sobre o impacto que me causou. Talvez porque o livro de Emecheta se apresente com linguagem inocente e simples e não revele de imediato a profundidade de suas reflexões culturais, antropológicas, sociais, psicológicas e políticas. Era eu quem precisava me preparar para degustá-lo.

Fui completamente arrebatada pela saga de Nnu Ego. Quanto de sofrimento, resiliência, determinação e coragem cabem em uma existência? A história começa, em 1936, em Lagos, na colônia britânica da Nigéria, com Nnu Ego correndo desarvorada, para se jogar de uma ponte. Teria uma conversa, no mundo espiritual, com sua chi. Queria entender por que seu primeiro filho, tão desejado e esperado, com apenas quatro semanas de vida, havia morrido de forma abrupta, durante o sono. Após esse início intenso e dramático, a narrativa volta vinte e cinco anos para contar as origens da personagem. Buchi nos encanta com um relato delicado dos costumes tribais, da altivez das mulheres rurais, da força e do poder dos homens, das tradições ancestrais, da reverência aos mais velhos; mas, sobretudo, do amor arrebatador entre Agbadi e Ona de que Nnu Ego é fruto. Ele, um grande e respeitado chefe igbo, poderoso, rico, forte, um caçador e um orador nato, detentor de muitas esposas, amantes e escravas. Ela, geniosa e atraente, filha de outro grande e respeitado chefe tribal, Obi Umunna, que não teve filhos homens e que, portanto, não permitiu que a filha se casasse para que não tivesse que se submeter a outro homem. Apesar das muitas esposas de Agbadi e da recusa obediente de Ona de se juntar ao amante, viveram uma grande paixão, fora dos costumes e formalidades da sua gente. Esse recuo na narrativa ajuda a contrastar, ao longo da leitura, a realidade do meio rural com a do meio urbano e, também, as origens tão nobres e plenas de paixão de Nnu Ego com sua trajetória de vida, eivada de sofrimento, tragédia, maus tratos e pobreza. Salta aos olhos a abundância e a liberdade da vida na tribo, os cuidados e o carinho com que Nnu Ego foi concebida e criada, os sonhos da menina e o grande destino imaginado para si; principalmente, quando se contrasta esse momento inicial com a escassez e a deterioração das condições de vida na cidade e com o casamento com um homem que não a respeitava e maltratava, além de quase não ajudá-la a prover pelo sustento da família.

Nnu Ego cresceu em Ibuza, uma pequena cidade igbo, mimada por aquele pai forte, cercada por costumes e tradições ancestrais. Já havia passado da idade adequada, quando foi dada em casamento a Amatokwu, um homem decente que parecia gostar dela e ser correspondido. Da mesma forma que a virtude da noiva deve ser imediatamente constatada, sua fertilidade também deve ser comprovada com uma gravidez logo no começo do casamento. Passados vários meses, no entanto, Nnu Ego não engravida. Não há vergonha maior para um casal que um matrimônio sem filhos. Naquela cultura patriarcal, uma mulher só tem valor depois que é capaz de gerar uma criança, especialmente se for um menino. Diante desse insucesso, Nnu Ego vê-se obrigada a ocupar uma cabana contígua ao alojamento principal do marido que toma uma segunda esposa. Envergonhada e praticamente devolvida para sua família, Nnu Ego é mais uma vez entregue em casamento, desta vez à Nnaife Owulum, trabalhador e morador de Lagos.

A chegada da futura esposa é uma grata surpresa para Nnaife Owulum. Para Nnu Ego, no entanto, o encontro com o novo marido é decepcionante. Seu aspecto físico mole e delicado não a agrada. Ele está totalmente fora do padrão de masculinidade a que estava acostumada e que admirava: homens altos, rijos, de mãos ásperas do trabalho nas lavouras. Nnaife era baixo, tinha uma barriga de mulher grávida que balançava, braços molengas. Seu emprego, lavando todo tipo de roupas de pessoas brancas, é motivo de repulsa e aversão para Nnu Ego. Ela não o respeita, acha que Nnaife não é sequer um homem, mas um escravo, um não africano. Seu desapontamento e seu desprezo, ao ver o homem a quem foi destinada, são imensos. Se não fosse sua segunda chance, teria voltado para casa. Orientada e apoiada pelas outras mulheres de Ibuza, expatriadas em Lagos como ela, Nnu Ego adapta-se à nova realidade e aos poucos compreende que a vida naquela cidade nova e efervescente é totalmente diversa daquela de sua comunidade rural. Para não depender completamente dos baixos rendimentos do marido, sabendo que os gastos com os filhos, com a casa e consigo mesma eram sua responsabilidade, Nnu Ego começa a trabalhar como comerciante de rua, deixa seu orgulho de lado e assimila que, naquele ambiente urbano, os maridos e as esposas não têm tempo para o amor, apenas trabalham de sol a sol, para garantir sua sobrevivência, fazendo o que fosse necessário para conseguir algum dinheiro.

Explode a guerra – um evento completamente incompreensível para a família Owulum –, e toda a configuração familiar, laboral e urbana a que estavam se habituando transforma-se muito rapidamente. Os filhos se sucedem – Nnu Ego tem mais oito filhos, sete vingaram –, e a penúria aumenta. Naife é alistado à força e Nnu Ego se desdobra para sustentar os filhos e dar uma boa educação ao menos aos meninos. Os percalços por que Nnu Ego passou foram muitos e limítrofes: falta de dinheiro e comida, uma pobreza doída e miserável, trabalho extenuante para conseguir qualquer recurso para alimentar os filhos, muito desamparo ao enfrentar todos esses desafios sem qualquer apoio do marido, uma solidão dolorosa por não ter tempo, nem condições materiais, de cultivar amizades verdadeiras. A vida cobrou seu preço: Nnu Ego ficou velha precocemente, passou a vida trabalhando sob condições às vezes inumanas, não conseguiu estudar, não conseguiu ser feliz ou ter um amor como o dos pais. Mas o preço mais alto de todos foi ver esvanecer o sonho de ser amparada em sua velhice por seus filhos, principalmente pelos filhos homens que pariu e criou e para quem conseguiu, a duras penas, oferecer uma educação, mesmo com toda a miséria que os rondava. Concretizar esse sonho seria o coroamento de sua maternidade, seu grande júbilo. Na verdade, cada um de seus filhos seguiu seu próprio caminho, em países diferentes até, muitas vezes sequer enviando notícias diretamente para a mãe. Se, por um lado, a profecia de que seus dois filhos homens se tornariam respeitáveis, líderes na nova Nigéria, foi realizada, tendo cumprido sua missão maior na vida; por outro, Nnu Ego teve que voltar para Ibuza, entristecida com a forma como os filhos a tratavam, criticada pelos membros da família do marido que achavam que ela não tinha feito um bom trabalho como mãe, sozinha e sem amigos. Estava esvaziada de sentido e não pertencia mais àquele lugar. Era como se tudo pelo que lutara houvesse desaparecido, não tivesse nenhuma importância. Sua vida perdeu qualquer significado. Morre sozinha, à beira de uma estrada, cansada de tanto viver. Quase como um deboche, todos os seus filhos se reúnem para o seu sepultamento que é grandioso: precisavam mostrar os bons filhos que eram. Ergueu-se um jazigo para que os netos e as pessoas que quisessem pedir por fertilidade pudessem orar a Nnu Ego. Morta, ela se recusa a conceder tais favores. “Que egoísta!”, dizem as outras mulheres.

Durante o andamento da história, Buchi vai nos colocando questões, algumas diretas, que acompanham a narrativa principal, outras, sutis, não menos importantes, compondo um quadro da sociedade nigeriana daquela época. De forma direta, nos deparamos com toda a força do patriarcado, definindo, controlando e limitando a vida das mulheres e estabelecendo um padrão específico de masculinidade. Impossível não sentir o peso das tradições, em confronto com novos costumes, redefinindo relações sociais e familiares; ou não refletir sobre a supervalorização da maternidade, sobre a competição e a amizade entre as mulheres. Emecheta também expõe e problematiza o sistema colonial britânico, a convivência problemática, desigual e humilhante entre africanos e europeus.

Não é um livro autobiográfico, embora a história de Nnu Ego tenha muitas semelhanças com a vida de Buchi Emecheta. Ela própria se casou muito nova, aos dezesseis anos. Mudou-se para Londres com o marido, viveu um casamento abusivo e teve cinco filhos. Aos vinte e dois anos, divorciou-se, um feito colossal por si só para a época e para a sua condição de imigrante africana na Inglaterra. Seu ex-marido renegou os filhos, e ela os criou sozinha, enfrentando as mais diversas dificuldades, num país estrangeiro, sem estudo e sem grandes recursos. Posteriormente, confrontou-se com a decisão de uma de suas filhas já crescida de ir morar com o pai.

Quando se decide ter os próprios filhos, é tentador o desejo de tê-los sempre por perto e a projeção dos próprios sonhos não realizados em futuros brilhantes para aquelas pequenas extensões de si mesmos. No entanto, uma das primeiras lições, arduamente incorporadas (se tanto...) pelos pais é a de que os filhos não são seus, têm vontade e asas próprias para alçarem seus próprios voos. Essa afirmação, verdadeira na sua essência, pode esconder uma certa frustração e uma impotência diante da necessidade de reconhecer que os filhos são seres autônomos, com vontade própria. Situações mais dramáticas, como a de Nnu Ego e a da própria Buchi, podem revelar ingratidão, indiferença, egoísmo, crueldade. Mas a verdade é que os filhos não pertencem aos pais, são do mundo – um mundo que é cada vez mais amplo e cheio de atrativos.

No fim, “As Alegrias da Maternidade” é uma grande ironia, o transbordamento de uma traição, a transmutação da dor de uma mãe abandonada. Um livro, enfim, que ajudou a aceitar mais mansamente a constatação de que a maternidade é solitária, mas demanda apoio e compartilhamento; de que o amor com que se concebe e se cria os filhos pode não ser retribuído como esperado; e, definitivamente, de que gerar filhos e amá-los não faz de um uma mulher um ser humano completo e realizado. Há amizades a cultivar, há a própria existência com que se preocupar de forma equilibrada e sensata. Fechei meu ano de leituras com chave de ouro, degustando de forma madura a escrita de uma autora tão marcante e forte.

 

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