Os livros e a Feira
 



Os livros e a Feira

por Jacira Fagundes

Desde quando o livro tem sobre mim todo um encantamento, uma fascinação? Porque estes são sentimentos que me nocauteiam enquanto transito pela praça desta minha cidade e a vejo: florida, bela e acolhedora, a abrir-se generosa a toda sua gente que vem reverenciar o meu objeto de desejo – o livro.

Desde quando o livro me seduz, assim, ostensivamente? Vasculho a memória na tentativa de resposta à pergunta insistente. Encontro cenas distantes e as trago ao presente; pois a familiaridade, durantes estes longos anos, me autoriza esta possibilidade.


“Tenho lá meus sete, oito anos e acabo de receber das mãos de meu irmão mais velho um livro de capa dura, com uma ilustração meio macabra na capa: um caldeirão de sopa fumegante repousa sobre um pequeno caixão de defunto. No caixão, dorme o sono eterno um menino da minha idade. Chama-se Antero, sempre rejeitou a comida, é magrinho, fraquinho, e as pernas, de tão finas, quase não sustentam o corpo. Foi um pé de vento, num dia chuvoso de inverno, que o levou para o além; as mãozinhas coladas ao guarda-chuva preto do pai. Meu irmão me deu o livro de presente, cheio das boas intenções. Li a história em dois fôlegos, sofri pelo destino do protagonista, mas continuei longe de sopa durante toda a meninice. Nascia ali uma afeição incontrolável.”

“Outro irmão, adolescente, parece ter o mesmo gosto que eu. Adora ler. Traz para casa muitos e muitos livros, que costuma trocar com amigos. Tenho permissão para mexer nestes tesouros, afagar as capas, bisbilhotar seu conteúdo, ler sem reservas. Na mesa há a velha máquina de escrever, extraordinária para meus dedos pequeninos e pouco ágeis, e eu me extasio com o teclado, e absorvo a magia da palavra impressa no papel, e curto a certeza que a paixão será para toda a vida.”


Ainda não existia a literatura infanto juvenil como ela se impõe hoje. Na escola, eu era sempre chamada a declamar poesias nos eventos cívicos. Em casa, me abastecia do que os irmãos mais velhos me alcançavam, com o aviso de que não é leitura pra ti, mas não vais entender mesmo... Eu entendia. E me debrucei com furor sobre Olhai os lírios do campo e Casa de bonecas. Foram minhas primeiras leituras de gente grande. Paralelamente, eu passava a criar os primeiros poemas e extravasar sentimentos da então adolescente na folha de papel.

O interesse formal pela escrita veio bem mais tarde, já uma mulher, com tarefas a cumprir na família e no trabalho. As leituras continuavam entre as mudanças de fraldas e o corrigir de trabalhos dos alunos. Até que a escrita, a princípio como trabalho docente e experimentação frágil, exigiu determinação.

Fui buscar aperfeiçoamento. Frequentei oficinas. Escrevi diuturna e compulsivamente. Profissionalizei-me escritora.


Hoje transito pelos dois mundos. O mundo real e o mundo ficcional harmonizam-se como podem. Meus personagens são uma mescla de ficção e realidade. Também eles habitam aqui e ali. E me conduzem por este caminho que trilho desde então, onde pretendo permanecer, no mínimo, para sempre.


Aprecio a Feira do Livro assim repleta de transeuntes, o garoto curioso tomando de assalto os balaios, deliciando-se com os achados.

São momentos de pausa que me dou, entre as palestras e as oficinas com as quais me envolvo; assisto algumas delas, em outras sou eu a responsável pela programação e desenvolvimento.

Quando volto de uma entrevista ou de alguma atividade, passo a circular entre as bancas, revejo clássicos, folheio páginas, leio orelhas, encontro parceiros, amigos, livreiros, autores conhecidos do público e outros nem tanto.


A praça e seus livros confirmam o que já sei; que aqui se encontra um mundo à parte, idealizado, um mundo de seres imaginários que se permitem prazeres, amores, paixões, caminhos vários por vias não convencionais, livres, inquietantes. São sonhadores, quixotescos e bizarros os seres que habitam os livros. Nós, seus criadores, os conduzimos com mãos hábeis e coração arfante. Por isso a praça, por isso a feira.


Desde quando o encantamento? Convenço-me que desde sempre, desde Antero, desde o meu primeiro livro de leitura, desde o delírio com as primeiras letras, a primeira palavra impressa no papel na ultrapassada Olivetti.

 

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