Por não discutir com o destino, um jovem curitibano de 18 anos, atraído a Belo Horizon-te pela produção poética dos irmãos Campos, encontra-se participando das atividades da Semana Nacional de Poesia, em 1963. Impetuoso, se apresentou aos organizadores da mostra, os poetas Affonso Romano de SantAnna e Afonso Ávila, e logo se entur-mou afinal, ele não viajara a passeio! Após o encerramento do encontro, ao invés de voltar para Curitiba, fez uma parada não planejada em São Paulo a convite de Augusto, um dos irmãos, com quem fizera amizade. Aquele rapaz, com físico de judoca, es-candia versos homéricos e, em algum momento, disse: de dentro do meu centro/ este poema me olha pelo que consta, ao ler uma edição dos Cantos, de Ezra Pound, já instalado na casa de Augusto, onde varou a noite acordado, imerso em leituras diversas e edificantes/desestruturantes.
Em data imprecisa, mas por aquele período, o jovem poeta tem outro encon-tro inesperado e admirável, tipo você para/ a fim de ver/ o que te espera, e que o fez admitir: ainda/ confundo/ felicidade/ com este/ nervosismo esse meeting também seria significativo para a sua vida. Foi com um japonês, não o da bananeira, um japo-nês já famoso, que passeava pelo Brasil como correspondente de um jornal da Terra do Sol Nascente, quando assistiu a um desfile de Carnaval no Rio de Janeiro; sobre a viagem, o japonês viajante publicaria crônicas em Aporon no Sakazuki, em 1952, e uma peça de teatro, Shiroari no Su, 1956, nunca traduzidas para o português (https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/24853/24853.PDFXXvmi= Acesso em 30.12.2018). Fascinado por ideogramas, ikebanas e outros quetais orientais, como hai-cais, tankas e bonsais, Leminski liberou geral e lascou, reverente: lendas vindas/ das terras lindas/ de orientes findos// me façam feliz/ feito esta vida não faz. Trágico esse jovem, com a força de quem proclama seus próprios arbítrios (algo entre Hegel e Schopenhauer).
Por sua vez, o jornalista Yukio Mishima (pseudônimo de Kimitake Hiraoka), também poeta e romancista igualmente trágico, desequilibradamente intenso esse japinha, de saúde precária na infância , julgava-se um velho excêntrico, sorridente, de vinte e cinco anos de idade. E, à primeira vista, supondo afinidades e influências conclusivas talvez não fosse a pessoa mais indicada para fazer o jovem poeta feliz, afinal, em um romance que publicara um tempo atrás (Cores proibidas, Kinjiki, 1951), mostrava sua esquizofrenia ao dizer que pretendia demonstrar as discrepâncias e con-flitos que existem dentro de mim, representadas por duas personalidades distintas. Mas este não foi um problema, já que a vida varia. Os dois encontraram pontos em comum, como entender que, quem lida com as palavras pode criar a tragédia, mas não pode participar dela.
Outro ponto em comum era a tradição milenar da poesia japonesa. O poeta de Curitiba escrevera certa vez: Bom dia, poetas velhos./ Me deixem na boca/ o gosto de versos/ mais fortes que não farei. E, depois de comentar com o novo amigo, ouviu do poeta mais velho, então um exemplar saudável, bronzeado, da virilidade nipônica, a reprodução de uma fala ouvida tempos atrás, que deixara entrever nele uma perso-nalidade prodigiosa e marcante: Tenho certeza que morrendo jovem se contribui deci-sivamente para a cultura da Pátria. Era o ideal que se extraía, então, dos clássicos japoneses, o shishi, a morte concedida como privilégio. E que Mishima também encon-trou, para sua satisfação, no ideal grego de beleza física. Bingo!
Mas, como dito há pouco, a morte era apenas um dos pontos que aproxima-va os dois recém-conhecidos. Assim como a tradição. A certa altura do campeonato, ambos tornaram-se rônin, algo como samurais sem chefe. Revoltados, de certa forma ou de todas as formas. Irrequietos. Poetas em sentido mais amplo. Pode haver derrota mais execrável do que quando se é corroído por dentro pelas secreções ácidas da sen-sibilidade até que perdemos nossa silhueta, dissolvidos, liquefeitos, ou quando a mesma coisa acontece na sociedade em nossa volta, e mudamos nosso próprio estilo para ficarmos parecidos com ela?, teria provocado Mishima. Ao que o caboclo cabotino curitibano, como o chamava o cineasta Júlio Bressane, querendo chamar a atenção do interlocutor, respondera: nunca quis ser/ freguês distinto/ pedindo isso e aquilo/ vinho tinto/ obrigado/ hasta la vista// queria entrar/ com os dois pés/ no peito dos porteiros/ dizendo pro espelho/ cala a boca/ e pro relógio/ abaixo os ponteiros.
Conversa vai, conversa vem, como vai o verbo/ nenhum querer/ querendo, Mishima comentou sobre a exposição com que se despediria dos seus leitores, que organizou em 1970 ano em que por aqui se comemorava o tricampeonato de futebol no México, o que não vem ao caso. Então. Lembrou o que registrara no que viria a ser o catálogo de capa preta da mostra: O visitante pode escolher os Rios que lhe interes-sem, sem se deixar arrastar pela correnteza dos que lhe desagradam. Serei sempre grato a quem quiser me seguir pelos quatro Rios da minha vida, mas não creio que o número desses visitantes há de ser muito grande. Reticente, Leminski, em sua elo-quência zen, rebateu: Tão fácil ser semelhante,/ quando eu tinha um espelho/ pra me servir de exemplo./ Mas vice versa e vide a vida./ Nada se parece com nada./ A fita não coincide/ com a tragédia encenada./ Parece que foi ontem./ O resto, as próprias coisas contem.
A tarde densa foi chegando ao fim, o burburinho ao redor igualmente intenso. Mas os dois insistiam naquele estranho diálogo, parecido com a passagem pra pasár-gada/ xanadu ou shangrilá... Papo transcendental, papo zen, em direção ao satori, quem sabe. Papo de cachorro louco, com certeza. Mas aquela coisa, entende, um passa os dias/ chutando postes para ver se acendem// o outro as noites/ apagando pa-lavras/ contra um papel branco, metaforizava Leminski.
Parênteses. Loucura havia na família do jovem Hiraoka, pelo menos por parte da avó paterna dona de um caráter intolerante, inexorável e propenso a rasgos poé-ticos de imaginação desvairada, segundo confessou. Leminski, embora filho de um sargento e neto de um capitão do Exército, tinha como disciplina maior o fazer poético e os ensinamentos da filosofia oriental, principalmente pela prática do judô, que o levou a graduar-se com a faixa-preta como shodan, integrou a seleção paranaense em 1967, aos 23 anos, e disputou o Campeonato Brasileiro de Judô, no Rio de Janeiro. Mas foi só por volta dos 21 anos que se dedicou ao judô, apresentado de viés pelas grandes aventuras dos samurais. E talvez não querendo parecer paparicado para o recém conhecido, lembrou de uma situação do cotidiano materno: Minha mãe dizia:/ ferve água!/ frita ovo!/ pinga, pia!/ E tudo obedecia. Rigor e afeto, nem sempre com os mesmos pesos e medidas para as figuras femininas: Natsuko e Áurea o pri-meiro, neto de uma, o outro, o primogênito. Fecha parênteses
As questões que aproximavam Leminski e Mishima talvez se dessem mais no plano da palavra e do intelecto. Poucos amigos sabiam, ainda, que cedo Leminski en-trara em contato com clássicos do porte de Homero, Vigílio e Dante, com a gramática, tanto de língua portuguesa quanto hebraica e latina e, por conseqüências, com as línguas derivativas. Ele também havia descoberto a cultura oriental, sentido a fascina-ção pelos ideogramas do idioma japonês e o poder de síntese que eles traziam em si. Qualquer hesitação, seja diante de um golpe ou de um poema pode ser fatal. Pensar pode ser fatal, disse, então. E revelou, quase como um segredo de Estado, que nas bibliotecas ou nos tatames, intelectual ou atleta, ele procurava dedicar os mesmos cui-dados para o corpo como para a mente. Mishima, os que o conheciam já sabiam, era cultor das artes marciais. Um fisiculturista nato. Contou a Leminski que praticava kara-tê e a esgrima Kendô, com armaduras medievais (faixa preta, quinto grau) com a qual procurava atingir a sensação suprema, que dista apenas um fio de cabelo do alcance dos sentidos e exercitava-se com halteres.
Mas nem sempre foi assim. A infância havia sido triste em função da saúde fragilizada. Tão delicada que, aos quatro anos, a mãe chegou a reunir brinquedos e aprontar roupas do pequeno Hiraoka para colocar no caixão. A doença que o abateu, contou, no fundo era emocional o gênio irascível da avó era maligno para o espírito sensível e inteligente de Mishima. Ele não tem dúvidas de que a obsessão pela morte veio desses momentos, quando preferia ficar se entregando a fantasias extravagantes e desenhando figuras. Mishima aproveitou a deixa, que ele mesmo criou, para comen-tar: A relação entre a palavra e a realidade não é a mesma que existe entre o ácido e a placa de metal. Palavras são um recurso que reduz a realidade a uma abstração que nossa razão possa aceitar, e em seu poder de corroer a realidade, inevitavelmente insi-nua-se o perigo de que as próprias palavras também sejam corroídas. As duas ten-dências corpo e mente , perseguiram o japonês mais ou menos a partir dos 30 anos, tendo ele se dado conta de que elas podem operar juntas sem conflito, mesmo no ca-so de um escritor nato, dando origem a um estado altamente desejável no qual o trei-namento com as palavras conduzisse a uma descoberta espontânea da realidade.
E assim, se descobrindo e se distanciando, nas diferenças e nas semelhan-ças, os dois admiradores das tradições intelectuais e físicas da cultura oriental envere-daram pela noite. Leminski dizia: pelos caminhos que ando/ um dia vai ser/ só não sei quando; o amigo respondia, dramático, como a enxergar o fim daquela conversa e daquele breve convívio: Era-me familiar, é verdade, a dor doce que sucedia quando ela se misturava com um complexo turbilhão de ideias, mas ainda era ignorante das alegrias profundas produzidas quando os dois tipos de apelos, encontrando-se no cor-po, fundem-se numa harmonia integral.
Entendendo que estavam próximos de encerrar a conversa, Leminski come-çou a elaborar uma idéia nada que eu faça/ altera este fato... , mas foi prontamen-te interrompido pelo interlocutor, já exaltado e vibrante, em seu pouco mais de um me-tro e meio de altura: O melhor tipo de autodisciplina para escritores e jornalistas é a introspecção, sentenciou. Rápido no gatilho, Leminski disparou: em la lucha de cla-ses/ todas las armas son buenas/ piedras/ noches/ poemas. Quem estava por perto e ouviu apenas esta parte da conversa, não entendeu patavina. Mas pôde ouvir Leminski ainda expressar uma outra sentença: não discuto/ com o destino// o que pintar (que alguns dizem que ele teria dito também eu assino...). Já tendo dado tchau se afasta-do, Mishima teria replicado algo como Há muito desejo morrer, antes como samurai do que como um literato. Vai saber...
(Os poemas de Leminski foram extraídos dos livros Caprichos e Relaxos e Distraídos Venceremos. As demais falas, dele e de Mishima, de biografias sobre os dois escritores e da autobiografia do escri-tor japonês.)