Durante a faculdade de Letras, uma das minhas professoras de literatura brasileira pedia que analisássemos obras literárias sem levar em consideração a biografia do autor ou da autora. Ela dizia que as experiências vividas pelo escritor ou pela escritora não deveriam aparecer em nossos trabalhos, os quais deveriam focar somente na obra em si. Eu ficava muito intrigada com aquela proposta e nós tÃnhamos grande debates sobre o tema. Muitas colegas, como eu, defendiam a ideia de que as experiências daquela pessoa influenciavam diretamente a sua obra e que, por isso, deveriam ser parte dos nossos estudos.
Naquele mesmo semestre, a instituição promoveu a semana acadêmica de letras e um dos convidados foi o escritor Tabajara Ruas. Esse encontro com o autor aconteceu em um auditório e, depois de sua fala, foi aberto o momento para perguntas. Eu nunca fui muito de perguntar em eventos dessa natureza, mas vi ali uma oportunidade de ouvir da boca de um escritor o que ele achava sobre a nossa discussão em aula. Ergui o braço e recebi o microfone. No mesmo instante, vi a professora sentada na plateia, mais à frente. Elaborei uma introdução explicando o embate que tÃnhamos em aula e olhei para ela, sorrindo. TÃnhamos uma boa relação e vi que não haveria problemas em fazer o relato. Finalizei perguntando se ele achava que as experiências da vida dele influenciavam nos seus escritos.
Ele, como possivelmente todo escritor e toda escritora, de forma sensata, elaborou uma resposta dizendo que, de uma forma ou de outra, sempre havia resquÃcio de experiências pessoais em suas obras. Não lembro exatamente quais foram as suas palavras, mas era algo no sentido de que era impossÃvel escrever algo sem que aquilo fosse parte de si.
À época, foi divertido adicionar esse olhar aos nossos debates de aula e nós, alunos e alunas, brincávamos de ter razão sobre o tema. Porém, hoje, eu entendo o que a professora queria dizer. Ela é uma estudiosa da literatura e ela vê a literatura como uma ciência. Ela tentava explicar que a obra existe e é completa em si. O fato de o escritor ou a escritora ter vivido algo parecido é irrelevante porque isso não faz diferença no valor literário do que escreveu. É possÃvel afirmar que a influência existe; no entanto, não precisa ser parte integrante de uma análise literária.
Lembrei do exemplo de Emily Brontë, autora de “O Morro dos Ventos Uivantes”, uma obra tensa, com muita paixão e violência. Se considerarmos que passou boa parte da vida dedicada a tarefas domésticas e a ensinar catequese, além de ficar muito tempo sozinha em casa, por certo teremos dificuldades para relacionar suas experiências pessoais ao que pôs no papel.
Talvez um pouco da vontade de vasculhar a vida dessas pessoas está atrelada ao usual fetiche de saber sobre a vida privada do outro. Haja vista as revistas e os sites de fofoca que existem há anos e rendem fortunas esmiuçando cada detalhe sórdido de pessoas famosas. A curiosidade sobre a pessoa é natural e é evidente que, depois de passar um bom tempo imersa em sua obra, queiramos saber um pouco mais sobre o indivÃduo que nos proporcionou aqueles momentos. De qualquer forma, a obra é como uma planta para um biólogo, um animal marinho para um oceanólogo ou uma equação para um matemático; ela vive e está pronta para ser analisada e admirada na sua totalidade.