Ele foi até a janela várias vezes, tinha esperança de que a rua movimentada o ajudaria em seu ofÃcio. Olhou para os lados e a vastidão de opções acabou confundindo-o. Não, aquela não era uma boa ideia. Desta forma, voltou a deitar-se na cama. Mas a angústia da obrigação da profissão continuava importunando-o. Melhor levantar-se e tentar mais uma vez. Uma “veizinha” que fosse. E seu olhar através da janela procurava esperançoso por uma nova ideia.
Assim é a rotina de muitos escritores. Nem sempre a tal inspiração surge num passe de mágica. Este tormento tem inÃcio lá atrás, nos bancos escolares com a famigerada redação de “volta à s aulas”: “O que você fez nas férias?” Dá um branco. Embora as viagens, a praia, os amigos, a curtição possam ter feito parte das tais férias, neste instante o que bate é o desespero. E este desespero vem muitas vezes da vontade de agradar o leitor, neste caso, a professora, a tal nota azul esperada é a intenção. Por isto, escrever neste momento se torna uma tortura. Afinal, não basta escrever, tem que agradar. Tem mais, não bastar apenas agradar, tem que agradar o suficiente para tirar a nota azul. Assim fica difÃcil vir a tal inspiração “dar as caras”.
Ele continuava olhando pela janela. Um barulho estridente o tirou da sua concentração. Uma senhora foi atropelada. Ele também se sentiu atropelado neste instante. Agora sim que sua inspiração iria “pro brejo”. Mas não tinha como evitar, seu olhar continuava vidrado na tal senhora. Será que morreu? Em torno dela, além das sacolas vazias no chão, estavam as suas frutas, as verduras e um pacotinho da farmácia. Cuidava da saúde. Estava seu corpo magro estendido no chão, mas percebia-se que ela cuidava da saúde. Alimentação saudável. Corpo sarado pelas caminhadas matinais. Remédios. Talvez suplementos alimentares. O barulho da sirene aumentava. Profissionais da SAMU desceram do veÃculo apressadamente, nem deram bola para as frutas, as verduras, o corpo em forma ou para o pacotinho da farmácia, apenas tentaram reanimá-la. Tentaram assim como ele tentava ter uma inspiração poética naquele momento.
As tentativas da produção escrita fogem do alcance do escritor quando mais se faz necessário. Os prazos são totalmente desestimulantes, bem como a redação dos dias de férias. As folhas pautadas do caderninho brochura de redação e a tela do computador em branco podem ser angustiantes. Tão angustiantes quanto a espera por uma “notÃcia” sobre a tal senhora naquele chão.
Ele olhou para o redor dela e tudo que via eram as sacolas vazias. Aquelas sacolas vazias o faziam lembrar-se da sua mente que também estava vazia.
Cadê a poesia? As tentativas dele em escrever sempre eram assim, invadidas, atropeladas por acontecimentos que fugiam do seu controle. E, desta forma, ele continuava sem inspiração. Sem ter o que escrever. Melhor esquecer a senhora e ir para a cama. Não poderia fazer nada. O estrago já estava feito. O atropelamento das suas ideias. Melhor ligar a tv. Mas o burburinho da rua o chamava outra vez para a janela. Levantou-se e foi olhar. Cadê a senhora estendida no chão? Sumiu? Partiu? Será que havia morrido? E agora? Ficaria sem a inspiração poética e sem o desfecho do atropelamento. Danou-se. Os sinais de uma vida saudável ficaram lá pelo chão, também sendo atropelados.
Toda vez que os prazos chegam até os escritores a sirene piscante avisando que “danou-se” pede passagem. Aliás, por que os prazos são tão barulhentos? Por que eles não surgem como os sons dos cantos dos pássaros em dias ensolarados? Não, ela tem que vir no volume máximo, no estilo PUNK. Arrasando, invadindo, consumindo, atropelando. Será que matando, também?
O vinho o fez relaxar e dormir. Um vento gélido o acordou de madrugada. Onde estava? O som da televisão o trouxe de volta à realidade. Já estava amanhecendo. O jornal da manhã estava no ar. Ele levantou-se e foi fechar a janela, desviando o olhar do local fatÃdico e do pacotinho da farmácia (era o único vestÃgio que havia restado daquela tentativa de travessia).
“Ontem à tardinha uma senhora de 75 anos foi atropelada em uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Guilhermina Aparecida Gonçalves da Silveira estava voltando da casa de sua neta, a nutricionista Michele Santana. A neta contou para a nossa reportagem a conversa que havia tido com a sua avó, horas antes: “Nós falávamos sobre a alimentação dela. Minha avó não gostava de frutas, odiava verduras, fumava desde os quinze anos e não praticava nenhuma atividade fÃsica. Seu únicos hobbyÂ’s eram ficar deitada na cama em frente à tv, ir até a janela para olhar para a rua ou ler. Ela adorava ler”. Ainda segundo a neta, dona Guilhermina, após a insistência dela, levou para casa alguns cereais para acrescentar na sua alimentação aos quais foram embalados num pacotinho de farmácia. Infelizmente, dona Guilhermina Aparecida entrou para a triste estatÃstica de óbitos por conta do trânsito louco da cidade. “Pelo menos – finalizou a neta – ela saiu de casa naquele dia, pois há tempos ela não saÃa. Era uma tentativa da vó em encontrar inspiração para continuar vivendo, pois ela estava melancólica após perder o marido no último Carnaval. Ela vivia a vida das personagens dos livros, estes eram seus únicos momentos de alegria”.
Portanto, não espere o Carnaval para alegrar alguém. Tente hoje.
Ele ligou o computador e começou: “Era uma noite quente de verão quando eles se conheceram naquele cruzamento das duas avenidas, Seu Antônio e dona Guilhermina Aparecida. A partir daquele instante teve inÃcio um grande amor que jamais teria fim, apenas seria atropelado pelo destino...”.