No inverno o pessoal não me vê muito por aí, prefiro me recolher. Mas no verão, ahh o verão, como é bom! Acelera meu metabolismo, fico bem doidinha, ligadona, desentoco e fico muito a fim de me alimentar e perpetuar a espécie. Pois então, aqui começa esta breve história, com o calor resolvi passear à noite.
Entrei pela fresta da janela, tinha um odor que me chamava, acho que vinha do lixo, mas estava fechado. Nada feito, não consegui acessar. Então resolvi passear, entrei e saí dos armários, andei pela pia. Tudo muito limpo e asseado, nenhum farelo ou sujeira, alimentos guardados dentro de potes ou embrulhos lacrados inatingíveis e a fome apertando. O pior é este cheirinho de sabão ou detergente de eucalipto, argh!
Mas eis que lá no meio da madrugada de repente acende a luz, barulho de passos em chinelos arrastados na direção da cozinha, ai que medo! Melhor me esconder no escurinho do nicho do armário, lá no fundinho atrás da garrafa. Termina o sossego, quando vejo entra aquela mãozona e vem justamente pegar a garrafa onde eu pousava. Percebo que notam minha presença, ouço gritos, alvoroço, de repente estou caminhando sobre a pele e pelos daquela mão e logo sou arremessada para longe. Caio na pia e corro para a borda, embaixo dela me agarro de cabeça para baixo, fico quietinha para ver se me esquecem, quem não é visto não é lembrado. Ela pragueja palavrões sobre minha pessoa, depois fala sozinha com seus botões alguma coisa sobre o spray, "cadê o spray?". Fico tensa, mas imóvel. Não adianta nada. Ela abre uma outra porta e tira o tal do spray, sacode a embalagem e depois direciona o spray para mim, sim, para mim! Quer me matar! Pensa que será fácil, mas corro, corro, corro tudo o que minhas perninhas permitem para me safar. Caio no chão, cambaleio, mais spray por cima, fico quase grudada no chão, mas resisto, me recupero e ainda corro para trás do lixo. Ela também é rápida e me procura, desta vez o jato veio em cheio sobre mim, já não tenho mais forças, reviro, me contorço e termino convulsionando de pernas para cima. Fico empoçada na espuma branca venenosa do inseticida. Penso sobre minha breve vida, o bueiro onde nasci, meus pais, meus irmãos, minhas crias, deixei um legado de descendentes, todos soltos por aí. Que a vida traga comida e mais sorte para eles!
Ainda sinto meu cadáver sendo recolhido num plástico atado com firmeza para que não entre ar, não posso respirar, agora não tem mais volta. Sou jogada no lixo, bem ali onde eu queria estar desde o início, finalmente encontrei o paraíso desejado, mas já não posso dele desfrutar. A vida é assim...
Elaine Rosner Silveira é psicóloga e psicanalista, interessada nas manifestações da cultura e subjetividades. Escrever é uma diversão principalmente ao encontrar interlocutores nas oficinas e fora delas. Participa do
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