Acordo num sobressalto, ainda é madrugada. Penso ter ouvido um tropel de cavalos cortando o pesado silêncio que antecede o nascer do dia, antes que os pássaros comecem a ensaiar seu despertar. Por certo despertei de um pesadelo. Mas um relinchar ressoa, primitivo e feroz. Levanto, às tontas, e abro a persiana com cuidado.
Olho pela janela e meu coração estanca por um segundo, ao ver as crinas negras balançando ao ritmo veloz do galope. São seis corcéis de pelo luzidio e olhos profundos e mansos, que em nada denunciam a missão de que fazem parte, a puxar uma carruagem da cor do céu em noite de tempestade.
Já adivinhamos, tu e eu, quem é que a conduz, uma mão nas rédeas, na outra, um açoite. Não ouso dizer seu nome, temo que ela me escute, volte seus olhos para este quarto e coloque sobre nós sua coroa e sua espada, repetindo o ritual que assombra a Terra desde o início dos tempos.
A carruagem desliza, quase em silêncio, como se os cascos não tocassem o asfalto. Para diante de uma casa e então o tempo se detém: não escuto o tic-tac do velho relógio de parede, a trajetória do pêndulo interrompida; os gatos equilibristas e suas sombras longilíneas desaparecem nos telhados irregulares; os sonhos se esvanecem nas mentes adormecidas, como se nunca tivessem existido. Esqueço de respirar enquanto Ela estende seu longo braço em direção à porta e estala o chicote. Lá dentro, uma lâmpada se acende e um lamento ecoa, límpido e cortante.
O coche se põe mais uma vez em movimento, há sempre muito a fazer na eterna e fúnebre colheita. Não há nada que aplaque a fome com que a sombria dama atravessa avenidas, campos e estradas, paredes, moinhos e escadarias, elevadores, morros e salões de festa. Nada a impede, nem rostos mascarados, nem remédios que gotejam lentamente ou o oxigênio à força insuflado nos pulmões, armamento contra a asfixia. Nem pedidos de bom senso e perdão, nem orações e joelhos dobrados, nem armistícios ou bandeiras brancas.
Alguém acorda e solta um grito abafado, espantando-se tanto quanto eu diante da cena que se descortina no torpor da aurora. Os animais resfolegam, os arreios retinem, a incansável marcha segue seu curso.
Por muitas noites, ouvi o trepidar da cavalgada se aproximar e se fazer distante, num carrossel sem fim, e voltava a respirar como quem emerge do oceano, tomando fôlego para viver mais um dia, com a sombra do esquecimento e uma minguada esperança a me fazerem companhia. A carruagem passa, dias e noites a fio, numa espiral decrescente, se aproximando, sorrateira, querendo fazer uma visita, mas finjo não ver, sou uma péssima anfitriã.
Vai alta e muda a madrugada - inquietante, assustadora calmaria. "As aventuras de Mark Twain" repousam no meu colo.
Um estrépito, o livro vai ao chão.
A porta do quarto se abre, com vagar.
Anabela Rute Kohlmann Ferrarini, gaúcha de Porto Alegre, viveu durante 17 anos em Rondonópolis, Mato Grosso, onde se tornou Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da UFMT. Membro do grupo de pesquisa Alfabetização e Letramento Escolar (ALFALE) e do Clube de Leitura Doce de Letra. De volta ao Sul, trabalha com revisão de textos e tem se dedicado à escrita de poemas, crônicas e contos. Avó da Tiana e mãe do Davi, da Júlia e do Mateus e leitora encantada da poesia de Mario Quintana. Participa do
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