Pedro olha a bola na marca da cal. Se afasta a passos vagarosos e precisos até a linha da grande área. Respira. Respira novamente para só então levantar a cabeça e olhar o gol. Não vê goleiro, apenas o gol, enorme a esta distância. Conhece a linha tênue que separa a glória do degredo numa partida de Copa do Mundo. E respira.
Na periferia da capital paulista ele corre no terrão. Os pés descalços são ásperos e parecem adaptados ao solo rústico. Sequer a poeira que sobe da terra seca é capaz de lhe estorvar. É o seu habitat. Onde passou grande parte da sua vida.
Na frente do barraco, antes de entrar, ele derrama a água da tina nos pés sujos, formando um eterno lamaçal. Beija a testa da mãe perto do fogareiro improvisado e abana a mão para o pai deitado um tanto zonzo no chão. Seus irmãos pouco ficam em casa à noite - ou de manhã ou à tarde. Do pai, com hálito de cachaça, ouve que é preciso arrumar um segundo emprego e parar de brincar de futebol. Da mãe, recebe um afago e o cochicho: "Precisa não, meu filho". E retribui baixinho: "Um dia tiro a senhora daqui". Na panela, ele se serve do caldo ralo. Beija a mãe e vai para o seu canto dormir.
De madrugada, no caminho ao trabalho, ele entrega na comunidade as trouxas de roupas lavadas pela mãe no dia anterior. No morro há mais escadas que ruas e ele aproveita cada segundo deste sobe e desce para fortalecer as pernas. Ao chegar no ponto de ônibus, mais um desafio aos limites do corpo: fazer-se caber no primeiro coletivo que passa, esquivando-se com habilidade dos outros. Seu serviço de office-boy continua a contribuir para a sua forma esguia e ele faz muito mais bancos que os colegas. Antes de voltar para casa, ele passa no seu local para fazer a bola rolar e sentir o gosto da terra.
A grama, de tão perfeita, parece um tapete real. Calça chuteiras, mas sente saudade do pé descalço. Sente falta de se conectar com a terra. Agora são dois obstáculos entre eles: a grama e o calçado. Não ouve mais ela lhe dizer. Sente falta do pó. Ouve apenas ao longe o grito frenético dos torcedores, em nada diferente dos tiros ouvidos no morro. Apesar disso, sabe bater na bola. O que para muitos depende de muito, para ele soa natural, como respirar. Não sente falta dos irmãos ou do pai. Apenas da mãe, que lhe deixou antes que pudesse cumprir com sua promessa.
O pênalti. A chance. Uma única chance para a consagração. O que será necessário para ela? Habilidade? Foco? Determinação? Sofrimento? Pedro repassa uma cena e nota o necessário: é amor. E antes de partir para a bola ele respira e pensa na mãe.
LUÍS ANTÔNIO RIBEIRO JÚNIOR nasceu em São João da Boa Vista/SP, na primavera de 1982. É Promotor de Justiça do estado de Goiás, Psicanalista e amante da literatura. Participa do
Curso Online de Formação de Escritores.