Vida de professor não é fácil. Não é com certeza a vida que eu escolheria. Digo por ela, a que mora aqui em casa.
Hoje ela chegou já com o telefone na mão, repleto de mensagens não lidas, abrindo a porta com barulho e falando sobre trabalho: a prova de recuperação da aluna inclusa, os e-mails a serem enviados ainda hoje, as planilhas de notas, vocês imaginam que as notas têm que ser lançadas uma semana antes, as listas de exercícios, um professor ainda não mandou a sua, ela grava um áudio naquele tom que me afasta. Já são três horas, diz ela me afagando, e ele não mandara nenhuma mensagem, a voz mais dengosa que a mão, denunciando a espera de uma mensagem que roubava sua atenção há alguns dias.
Largou a bolsa, leu algumas mensagens do grupo de coordenadores do colégio, um professor não poderia dar a próxima aula, estava enviando os experimentos para a aula, querendo saber se ela poderia copiá-los para os alunos.
"Vc vem a que horas? Havia marcado a massagem hoje?"
"Hj n vou, querida, tenho aula até às 18, depois ainda tenho uma reunião de condomínio, desculpe n ter avisado, bj."
Tinha que ver uma hora ainda esta semana, quem sabe conseguiria corrigir todas as provas e marcaria para amanhã depois da terapia, isso se a terapeuta a atendesse no horário. Estava bem chateada com esses atrasos, sem vontade até de falar com ela.
A terapia é algo que faz bem a uma pessoa, bom, é o que eu a escuto dizer, mas, às vezes, ela chega pior da terapia do que sai, principalmente se eu reviro o tapete da sala, aí ela usa aquela voz alta, e ultimamente já sai sem vontade de ir. Agora ela está sentada no sofá, os pés sobre o tapete, o telefone na mão, do lado, uma pilha de papéis, eu pulo bem em cima deles.
"Mãe, vc tá em casa?"
"Ju, vc está chateada comigo?"
"Oi, meu anjo, pode falar? Tivemos muitas faltas de professores hoje, peço que os coordenadores sinalizem os dias de reposição."
A mão desce pesada, mesmo assim eu gosto. As provas ficaram grandes, ainda estava na primeira folha. E as letras? Só pioraram. Seis horas já e ela nem pegara as segundas folhas, e o celular não parava, e os coordenadores falavam sem parar, e a mãe cobrava, e a mensagem não chegava. Estava na hora do Pilates, mais um dia em que faltaria. Levantou-se para preparar um café.
Ainda bem que existe o café, porque vida de professor é igual à água fria, e eu, escaldado, sei bem a hora de pular fora, ou de amaciar a minha dona. Na hora do café, eu passo bem rápido entre suas pernas, me jogo no chão, viro-me, olho de lado. A mão vem descendo, agarro-a entre as minhas e ronrono bem baixinho um quero mais. Ela amolece, esquece as mensagens, as provas, a mãe, e aquele humano que vem aqui em casa muito de quando em vez para me botar para fora do quarto.
Ela me pega no colo, vai me levando junto com a caneca. Senta-se no sofá, pega a pilha de papéis e começa a corrigir. Sei que hoje não tem hora para dormir, muitas vezes é assim que ela faz, quando não é um fim de semana inteiro sentada em frente ao computador, mas eu gosto. Fico do ladinho dela, de vez em quando ela resmunga, pergunta a si mesma, como assim, os alunos não entenderam? Eu fico bem olhando, o que um aluno tem que entender? Eu não entendo muito bem essa coisa de papéis, planilhas, provas, atrasos, ela sempre reclama dessas coisas. Mas eu entendo a minha humana, a professora de voz doce, ora amarga; quando é doce, sei que o dia foi bom, e eu aproveito; a amargura é anunciada pelo silêncio, a única coisa que acalmará seus ouvidos cansados da própria voz.
Lilian Piovesan
Sou carioca da gema, mulher cis, hetero, leitora e amante dos livros. Formada pela UFF (Universidade Federal Fluminense) em Letras (português/alemão), com pós-graduação em literatura brasileira pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e no ensino de língua portuguesa para estrangeiros pela PUC-Rio, atividade exercida após um período de seis meses como aluna de alemão na Universidade de Tünbingen, Alemanha, uma bolsa de pós-graduação pela UFF. Atuo na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro como professora de língua portuguesa do EFII (Ensino Fundamental II). Interessam-me as relações de gênero a partir das experiências vividas no chão da sala de aula, o que me levou ao curso de especialização em Gênero e Sexualidade na Educação pela AVM (EAD) e à escrita dessas histórias. Escrever é uma paixão. Participa do
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