As flores de Alice
 



Contos

As flores de Alice

Cíntia Dorneles Pasa


O balanço da rede na tarde morna de novembro cadenciava o passeio de Alice pelas aventuras da turma do Mickey.

- Já fez os temas, Alice? - indagou a mãe, em pé na porta da cozinha.

- Sim - respondeu a menina sem tirar os olhos da revista.

- Tem certeza de que não precisa organizar nada para a próxima semana?

- Siiimmm. Tá tudo certo - respondeu.

No domingo, quando saía de um restaurante na companhia dos pais, Alice encontrou Mariana, sua colega, que logo perguntou:

- Que flores você vai levar amanhã para a aula de ciências, Alice?

O bife e as batatas fritas se revolveram no estômago e se acotovelaram na garganta da menina, que puxou a colega pelo braço para longe dos adultos:

- Não lembro os nomes. Mas são muitas e bem coloridas e cheirosas - disse sem afastar os olhos da mãe.

Mal o pai estacionou o carro e a menina saiu em disparada com a bicicleta pelas ruas da pequena cidade. Cansada de tanto pedalar e com as mãos vazias, sentou-se num banco da praça. Olhou as flores nos canteiros, mas avistou também o guarda caminhando entre eles.

No banco ao lado, duas senhoras conversavam. Uma delas, a dona da única floricultura da cidade, contava à outra sobre o sucesso das vendas no dia de Finados.

Alice pulou sobre o selim da bicicleta e pedalou com toda a força que suas pernas curtas eram capazes, só relaxando quando avistou a placa indicando "Cemitério Municipal".

Sem temer sequer os rangidos do portão de ferro, a menina andou entre túmulos pegando o máximo de flores que seus pequenos braços podiam segurar. Na saída, parou em frente a um dos maiores jazigos sobre o qual vicejava um buquê de aromáticos lírios brancos. Pegou uma flor, a maior e mais vistosa, e a juntou às demais. Olhou para a fotografia do homem sério na moldura dourada e disse fazendo uma reverência com a cabeça:

- Obrigada, seu José Antônio de Vasconcelos. A sua flor é a mais branquinha e cheirosa de todo o cemitério. -- E foi embora pedalando devagar, sorrindo e aspirando o aroma das flores coloridas e cheirosas.

Na manhã seguinte, entrou exultante na sala de aula sob os olhares admirados dos colegas diante do enorme ramalhete que carregava. Ao receber as flores de Alice a professora elogiou a variedade e olhando o lírio branco, exclamou:

- Que lírio perfumado! Levei um buquê lindo para o meu pai no dia de Finados. Seu José Antônio de Vasconcelos adorava lírios brancos.

Alice engoliu o sorriso junto com a saliva viscosa e, sem falar nada, voltou para o seu lugar, onde permaneceu calada e imóvel até soar a sirene para o recreio. Enquanto os colegas brincavam pelo pátio da escola, ela permaneceu sozinha encostada no muro. A professora estranhou o comportamento da aluna, sempre participativa e alegre. Quando voltou à sala, percebeu a etiqueta da floricultura pendurada no lírio de Alice.

Na saída da escola, a professora a alcançou e indagou:

- Onde você comprou as flores, Alice?

- Eu ganhei - respondeu a menina olhando para o chão.

- Mentir e roubar são pecados - sentenciou a professora.

- Eu não estou mentindo e não roubei nada - disse ela sentindo as lágrimas queimarem as suas faces rosadas.

- Então de quem você ganhou tantas flores?

- De umas pessoas que não precisavam delas porque não podem ver nem cheirar.

Cíntia Dorneles Pasa
Liberta do mundo jurídico.
Resgatada pelo universo literário.
Mãe, avó, viajante e aprendiz de escritora.
Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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