Pipocas
 



Contos

Pipocas

Juliana Menezes


- Debita, Debita!

Até hoje, quando passo pela antiga casa dos meus pais, ainda posso ouvir os gritos do meu vô Paolo me chamando pela janela. Tinha lançado esse apelido pra mim que logo pegou, mas só ele dizia com aquele sotaque carregado do italiano passado de pai, pra filho e pra neto.

Não tinha jeito, pra ele, a campainha nunca teria serventia. O chamado sonoro, tirado do fundo da guela e as batidas na janela da frente eram o que surtiam efeito. Queria que viessem atender a porta correndo. E eu adorava, porque sabia logo quem tinha chegado e que a casa se encheria com a voz grossa dele, os pedidos de última hora, os capiscis e os va benes no meio do falatório.

Uma vez ele veio para eu ir ajudar a vender pipoca lá no cinema dele. Eu adorei. Achava insuportável a ideia de ficar em casa o dia todo porque a mãe logo vinha me chamar pra limpar, pra guardar, pra arrumar, pra dobrar. Na verdade, eu queria que me chamassem pra qualquer coisa, porque desde quando a gente tinha se mudado da roça para essa cidadezinha, eu estava enfiada em casa ajeitando a mudança com a mãe, que andava mais irritada do que nunca. Então quando o vô veio, eu saí disparada pela casa para ir com ele.

Quando chegamos no cinema, tava tudo meio mudado. Meu tio Bernardo agoniado com as pipocas, o bilheteiro correndo de um lado pro outro com o projecionista.

- Que é que tem aqui hoje, vô?

- Que é que tem aqui hoje? Que é que tem aqui hoje? Tem filme, minha Debita! Filme que não se vê em parte nenhuma por essas bandas! Filme do bom, capisci?

Ele sempre dava umas gargalhadas malucas depois dessas frases exaltadas. E aí vinha me dar uns beijos babados me pinicando com a barba dele. Fazia uma cócega danada e eu fugia.

Tio Bernardo era chato, mas hoje tava muito mais. Deu umas duzentas broncas em mim no espaço de menos de uma hora. "Veio pra me ajudar ou não" "Êpa, botou sal demais, botou sal de menos, não é aí que bota, vai queimar, presta atenção, para de se balançar, para de falar, para de roer a unha, para de gritar, fica quieta, olha aqui, cê não tá ouvindo." Já sabia que aquele lenga-lenga dele ia ficar no meu ouvido por dias e dias como um zumbido. Pensei que ia ser um dia horroroso, mas o pior ainda não tinha acontecido. Só quando soube o filme que ia passar, foi que piorou tudo.

- E.T. - O Ex-tra-ter-res-tre! - tio Bernardo fez questão de dizer bem explicadinho e bem do meio da minha cara. Pude sentir seu bafo de cigarro, e aí ficou com o ar de riso me observando. Já acostumada com suas pirraças, segurei o choro e me estiquei para ver por cima do balcão.

- Vô! Vovô! VOOOOOVOOOOOOOOÔ!

- XIU! Quieta, Débora! - reclamou meu tio me segurando pelo braço. - Agora não é hora de chamar seu avô. Não tá vendo que ele tá doidinho com tanta coisa pra resolver antes do prefeito chegar!?

Puxei meu braço de volta. Não quis saber de prefeito. Era óbvio que o tio Bernardo não sabia nada do meu acerto com o vô. Será que o vô tinha esquecido? Será que não ia mais me colocar no melhor lugar, na melhor fila para ver o E.T.? Toda vez que ele passava, eu me esforçava para ele me enxergar, mas ele nem olhava em minha direção. Então, passei a enfiar as pipocas nos saquinhos aos montes, empurrando mais e mais, uns pacotes rasgaram, o tio resmungou qualquer coisa, mas eu não tava nem aí, ia mais e mais rapidamente ensacando tudo e entulhando os pacotes no armário quente.

Ouvi risos, corridas e vozes de crianças enlouquecidas vindo em minha direção comprar pipoca.Vi o vô cumprimentando um homem elegante e uma multidão passou a se mover para entrar de vez atrás dele na sala 2. Não sei como foi, não pensei na hora, mas quando vi, já estava entre o amontoado de gente que ia se apressando mais e mais e buscando um assento vazio na sala de projeção. Sentei em uma das fileiras do meio, só mais uma das várias crianças de uma família enorme que se sentou toda junta. De lá, a minha visão era perfeita e acho que o filme teria sido ainda melhor se não fosse uma menina da primeira fila ficar se virando toda hora para me olhar. Acho que foi por causa da risada alta ou do grito que dei numa das primeiras cenas. E mesmo depois, quando já mais escuro, ainda dava para ver a menina se virando para olhar mascando um chiclete com a boca aberta.

Quando o filme terminou, estava ainda meio tonta de êxtase, mas me esforcei para me enfiar por trás das cadeiras e me esconder entre as famílias pelo corredor. Porém, não fui rápida o bastante. Ao tentar passar pelo monte de gente, senti uma mão sobre o meu ombro, tio Bernardo. Pronto, contaria ao meu avô já que me encarava sério. Antes mesmo de ele reagir, eu corri para o vô Paolo, abraçando forte a sua cintura.

- Ah, Debita! Aqui, Sr. Prefeito, esta é a minha netinha de quem eu falava mais cedo.

Ele pôs as mãos nos meus ombros e me virou para eu ver o prefeito, mas eu tomei um susto. Na minha frente, quem estava era a menina do chiclete, ali ao lado do pai sorridente. Ainda mascava me olhando.Teria notado a minha escapada para ver o filme? Vi quando ela deu um puxão na mão do prefeito e cochichou.

- Pai, tenho aula de balé daqui a pouco.

- Já vamos, Nicole - ele respondeu sem olhar para ela, e então fez um cafuné apressado no meu cabelo e apertou a mão do vô agradecendo muito antes de ir embora.

Acompanhei Nicole de longe, sendo levada pela mão do pai e virando o rosto para trás para me olhar de vez em quando, o que ainda hoje não pude decifrar.

Depois que o cinema se esvaziou, o vô me abraçou bem apertado.

- Eu sabia que você não ia ficar vendendo pipoca enquanto passava um filme extraordinário como esse! Esta é a minha bambina! Ecco, vamos tomar um sorvete. Vai me contar o que achou do filme e só depois eu te levo pra casa. E olhando por cima do ombro, soltou o berro.

- Bernardo, fecha tudo aí e apaga as luzes. Ontem você deixou as do banheiro acesas.


Juliana Menezes nasceu em São Paulo, cresceu na Bahia, onde se formou em Letras e Jornalismo, e agora vive na Irlanda desde 2007. Começou a escrever muito jovem, mas levou um bom tempo para tirar as histórias da gaveta. Escreve principalmente poemas e contos e teve alguns de seus trabalhos publicados através de concursos literários. Na Irlanda, Juliana ensinou português para estrangeiros em universidades e escolas de língua antes de abrir a sua própria escola, o Portuguese Language Center, que existe desde 2010. Há cerca de cinco anos, passou a escrever também em inglês e recentemente teve poemas publicados em duas antologias. Atualmente, está participando do Curso de Formação de Escritores da Editora Metamorfose, trabalhando em seu primeiro romance LGBT e aproveitando a nova morada em uma zona rural da Irlanda ao lado de sua esposa. Instagram: @jumenezesescritora

 

Cadastre-se para receber dicas de escrita, aviso de concursos, artigos, etc publicados no portal EscritaCriativa.com.br