Desnudamento
 



Contos

Desnudamento

Ana Fonseca


Sentia um peso descomunal, afundada numa superfície arenosa, sufocada com barro, as nádegas enfiadas em sulcos gelados. Um fluxo de ondas do mar de água salgada me rolavam para alguma superfície seca. Uma dor intensa na cabeça expulsava toda e qualquer lucidez. Tentei em vão levar a mão direita à testa. Arrepios percorriam a pele dos pés, das mãos, dos braços. O corpo estava crispado e rígido, ensopado de dor e frio. A voz não saía, os olhos não abriam. Os raios riscavam o céu e percorriam meus poros, entravam em minhas artérias, estremeciam meu peito, ensurdeciam os pensamentos.

Com a respiração fraca, cravei os dedos de um pé na areia encharcada. A mão direita encontrou algum ponto de apoio que não sei bem o que era. Abrindo fresta de pálpebras, avistei escuridão. Mesmo assim tentei, tentei e tentei erguer parte do corpo. Em vão. Girei o dorso, lentamente, à direita. O teste de forças anulara as esperanças. Queria virar do avesso, para que a intensidade dos jorros de água esvaziasse a dor que esgotava a pouca lucidez que parecia emergir aos poucos. Senti um galho, trazido pela correnteza. Com leve flexão das costas, arrastei meu braço esquerdo pelo corpo. Estava nua, a veste enrolada no pescoço, rasgada pelas forças da correnteza. Eu não entendia, nem lembrava meu nome. Somente água, muita água, deslize de terras pretas e vermelhas, trovoadas ensurdecedoras e profundo vazio existencial.

Me agarrei num vestígio de galho, para não ser levada pela terra encharcada que descia de algum lugar com incontida volúpia. Era a vontade de viver que animava o fôlego para entreabrir as pálpebras do rosto afundado parcialmente no solo movediço. Tudo agonizava numa indescritível escuridão, quando um feixe de luz distante ganhou nitidez. Avistei um solado grosseiro de coturnos que se aproximavam. Terra e areia grudavam em meus cílios, limitando a visão a ínfimos pontos luminosos que aumentavam em intensidade. Tudo perdia o contorno, escutei a proximidade de passos, abafados pela tempestade. Deixei o nada tomar conta, desfaleci.

Despertei num ambiente esterilizado, silenciado pelo branco da paz. Estaria na ilusão da eternidade? Com os dedos das mãos, toquei um corpo estendido, sob lençóis leves, senti os pés gelados, a boca seca, escutei vozes distantes num relampejar de consciência. Tentei erguer-me, sem forças, adormeci por algum tempo.

Uma mão com toques suaves movimentou tubos ao meu redor, acariciou minhas mãos. Senti a proximidade de um rosto. Abri olhos e ouvidos. Avistei um rosto sorrindo promessas e pesares, e escutei uma voz longínqua que sussurrava: uma sobrevivente. A memória iniciava aos poucos, através de blocos de imagens de tempestade, de correrias, de deslizamentos de terra.


Ana Maria Eiroa Fonseca é bacharel em Comunicação Social nas habilitações de Propaganda, Publicidade, Relações Públicas e Mestre em Administração pela UFRGS. Atuou como professora do Curso Comunicação Social da UFRGS de 1978 a 2003.

 

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