Um final digno
 



Contos

Um final digno

Ricardo Souto Souza


Três batidas fortes no portão da garagem. Acordo com um salto, são sete da manhã. Eles vieram, chegaram para me buscar, impedir que eu complete a obra. Como descobriram? Não importa. A revelação da identidade pavimenta o caminho para a fama.

Sirenes. Gritos. Um estouro. Vestindo camiseta e cueca, corro para o segundo andar. Minha namoradinha fica sentada na cama, parece não entender nada. Coitada. Se entrarem no quarto atirando, a inocente não será poupada. É como eu digo: Quase nunca há mérito em ser inocente.

A estante. De dentro do interminável livro de Stephen King, retiro a minha defesa. Foi trabalho ingrato recortar mil duzentas e quarenta e oito páginas no formato da pistola. Mas nas incontáveis vezes em que carreguei a obra debaixo do braço, ninguém desconfiou. Um sucesso.

Agora derrubaram a porta da frente. Passos dentro de casa, vozes. Estão frenéticos, chamam o meu nome. Encurralado, olho pela janela. Tem mais dois deles no pátio. O coração tenta saltar pela boca, e respirar devagar colabora para que isso aconteça. Subam. Subam de uma vez. Um ou dois eu arrastarei comigo.

A madeira dos degraus estala, algum corajoso decidiu verificar os cômodos de cima. Chamam mais uma vez. Idiotas, pensam que eu ainda não sei que estão aqui dentro? Cochichos. Vem mais de um subindo. Me encosto na lateral de um armário, a janela fechada produz escuridão, um efêmero abrigo. Eles só podem acionar o interruptor se chegarem mais perto. E se chegarem mais perto... Tem alguém falando com a moça lá embaixo, escuto duas vozes femininas, a dela ecoa entrecortada por um choro compulsivo. Vai sobreviver, eu não. Os estalos vão ficando mais próximos. Subam logo, filhos de uma puta. Estão com medo?

Ligam uma lanterna. O facho inquisidor percorre as paredes, o chão, os móveis. Lá estão, de novo, na boca de uma ratazana, as três sílabas pelas quais mamãe me chamava. Só por isso o infeliz já merece um balaço na cara. Esse escroto acha que pode pronunciar, gratuitamente e em vão, o sagrado nome do maior serial killer que a província já conheceu?

Outra lanterna. Daqui até ali são mais ou menos sete metros. Uma gota de suor percorre as minhas costas, gelada, reação do corpo às duas luzes que agora apontam para onde estou. Eles que se aproximem, não vou espiar. Venham devagar. Quando a voz trêmula me mandar sair, vou atender respeitosamente aquele que cumpre o dever. Mas eu não faço nada por obrigação, sou motivado pelo gosto ou pela necessidade e não posso morrer espremido em um canto, como um inseto repugnante. Pior ainda, de cueca. Um ou dois eu levo comigo, é o meu preço.

É agora. Apontando contra as luzes, salto do esconderijo e avanço contra os dois policiais. Atiro. Busco apenas um final digno.


Ricardo Souto Souza, nascido em 1980 na cidade do Rio Grande/RS, é graduado em Direito e História. No ano de 2020, buscando ferramentas para a escrita ficcional, decidiu cursar a Oficina de Criação Literária do Professor Marcelo Spalding. É morador da Praia do Cassino.

 

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