As ideias que defendo não são minhas. Eu as tomei emprestada de Sócrates, eu as roubei de Chesterfield, eu as furtei de Jesus. E se você não gostar das ideias deles, quais seriam as ideias que você usaria?
Dale Carnegie
Perdera o pai para o mar, cedo. Com os pés pequenos fincados na areia, olhara para o céu e com raiva profetizara nunca se tornar pescador. Seria faroleiro, por vingança: para que os barcos nunca mais se perdessem no mar. Hoje, velho, na solidão do cômodo que a vida inteira lhe serviu de escritório e prisão, vê a morte rondar e enxerga o destino comum de todos os santos: a Ilha dos Loucos.
A Nau dos Faroleiros sempre encalha na Ilha dos Loucos.
A pobre criança, que na beira da praia velava impotente o corpo do pai, jurara vingança. Escolhera ser faroleiro por raiva, não por vocação. Agora que o farol perdeu sua utilidade e o governo cortou-lhe a luz para sempre, os braços enrugados se debruçam no parapeito da mais alta janela. Então o olho do faroleiro perscruta a linha de que é feito o além-mar. Observa-o como filósofo, tentando desvelar o mistério daquele encontro do céu com o mar, para onde quem vai não volta mais.
Relegado à miséria de um farol sem luz, que apenas lhe serve de abrigo contra o vento e a chuva, o velho faroleiro, que tantos barcos e vidas salvou, vê-se apontado na rua como se fosse um louco qualquer. Todos o ridicularizam. E no auge do seu nada, lembra-se de Sócrates, de Cristo... Enxerga a similitude entre a vidas desses santos e o ofício de faroleiro: dar luz aos que se veem perdidos nas águas revoltas do mar. Consola-se. E assim o incômodo das difamações se desvanece na mesma rapidez com que Sócrates bebera cicuta e Cristo estendera os punhos às marteladas dos pregos na cruz.
Deus comanda.
Sócrates, Cristo e o faroleiro são doidos colhendo a loucura de um mundo que se diz e se sabe são.
- Atenienses! Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor rumo, se eu, se vós, é segredo para todos, menos para a divindade.
O faroleiro antecipa as próprias exéquias. Enfia as mãos nos bolsos à cata de moedas. Encontra alguns centavos, que os põe sobre a mesa. Cata uma folha surrada de papel, um toco de lápis e escreve o seu codicilo:
- Estas moedas deixo a Asclépio, pelo frango-assado do último domingo.
Volta-se uma última vez à janela. Olha sem pressa para o céu e profetiza, decidido e aliviado:
-
Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.
Como um louco (assim diriam os céticos), dá seu último suspiro e parte.
Está consumado! Deus tem razão: a Nau dos Faroleiros sempre encalha na Ilha dos Loucos.
* Marco José Stefani é advogado e participante do
Curso Livre de Formação de Escritores