Paris
 



Contos

Paris

Ana Severo


Depois de anos de casamento, a rotina se instala impiedosamente. As conversas são previsíveis, marido e mulher já sabem o que o outro vai dizer. Surpresas são raras e, em geral, causam reclamações. Um chega atrasado para o jantar, o outro muda o sofá de lugar e assim vai. O controle remoto da TV é sempre dele. A decisão do menu é sempre dela. Quem assina o boletim das crianças é ele. Quem acompanha os deveres de casa é ela. Ela sonha com uma viagem à Europa. Ele faz reformas na casa da praia. Até o sexo parece seguir uma norma ISO 9000, altamente padronizado. Não que seja isso nove mil vezes, porque a vontade escasseia.

Márcia leu na revista Nova o testemunho de uma mulher que deu a volta por cima na crise de monotonia matrimonial. Se você não fizer nada, advertia a conselheira, seu marido vai procurar fora o que não tem em casa. Melhor você estar no comando, participando de tudo. E conta com detalhes picantes a ousadia. Aquilo começou a encher a cabeça da esposa. Não que tivesse elementos objetivos para sua suspeita, mas ele é muito inteligente, seria fácil me enganar. Pensando bem, eu não posso mesmo culpá-lo, está tudo tão igual em nossas vidas. Talvez a solução lida na revista seja um sacrifício que pagaria para manter o casamento. Afinal, não viveria sem o meu tigrão, pensava já chorosa.

- Rogério, precisamos conversar. Fale a verdade. Você tem desejo de transar com outra mulher? - Perguntou de supetão.

O marido hesitou. Amava Márcia, isto era certo, não queria estragar a parceria que construíram nestes anos de convivência. E depois, tinham filhos. Mas era homem. As bundinhas arrebitadas e seios empinados que se exibiam ao alcance do seu olhar eram uma tentação dos diabos. Claro, ficava só na sublimação, confessou, tentando tranquilizar a mulher. Seria incapaz de traí-la. Márcia o desafiou a um juramento:

- Se você for me trair, prometa que será comigo. A três. Um mènage a trois.

- Como?! E você toparia?!

Depois daquele juramento, Rogério não pensava em outra coisa. Cada mulher que avistava em sua frente, despia com os olhos famintos. Ui, que tesão! Ah, esta cinturinha nas minhas mãos... Márcia também não tirava as cenas fantasiosas de sua cabeça. Justificava para si mesma que precisava se acostumar com a ideia. Seria qualquer dia, era visível a forma com que o marido olhava para as mulheres. A vida ficou em suspense, os dois esperando o dia fatal.

Sandra trabalhava no piso inferior ao do escritório de Rogério e tomavam o elevador juntos. Um dia, subiu um andar e bateu na porta do vizinho. Entrou com a desculpa de uma consulta jurídica. Cruzou as pernas, deixando que as fendas laterais mostrassem sedutoramente as coxas bem torneadas. Não era jovem, mas era gostosa. Muuito gostosa.

- Vi como você me olha no elevador - falou, deixando o homem constrangido. Eu também te desejo, continuou, debruçando-se sobre a mesa, para que os seios sem sutiã ficassem a mostra. É hoje ou nunca.

Rogério emudeceu. Era o que ansiava, mas pretendia preparar a situação. Não podia envolver a esposa nisto. Será que a vizinha iria topar o trio? Por outro lado, Márcia o tinha feito jurar. Sugeriu à esposa levar as crianças para dormirem na sogra. A mulher ficou trêmula. O dia que esperara havia chegado.

Eu não posso estar assim, caidaça. Foi ao salão de beleza correndo, fez escova e uma depilação completa. Ah, não, hoje quero aquela decorada, disse para a profissional. Massagem e óleos aromatizantes corporais. Uma nova lingerie, é isto. Apimentada. Vou fazer Rogério preferir a mim, justificava enquanto, excitada, preparava-se para a primeira noite.

Àquela vez, seguiram-se muitas outras, sempre com a desculpa de não perder Rogério. Até que ele começou a cair roncando entre elas, enquanto uma olhava para a outra acordada. Claro, todo mundo sabe que as mulheres gostam de conversar depois. Bonita sua saia, onde comprou? Eu adorei este seu sutiã. Em pouco tempo, estavam combinando ir juntas numa amiga que vendia roupas de grife pela metade do preço. Amanhã vou a Novo Hamburgo comprar botas, quer ir? Convidou a outra. E assim uma amizade foi timidamente se fortalecendo. Já era Márcia que propunha o encontro.

- Hoje, quarta? Mas é dia de Grenal e eu já combinei de assistir com amigos.

As duas foram ao cinema. E depois tomaram um espumante, como fizeram nesta e em várias outras quartas. Tornaram-se inseparáveis.

- Você conhece Paris? Este é o meu sonho - confessou Sandra.

- Sério? O Museu do Louvre, já visitei centenas de vezes pela internet. E o Rodin, então. Conheço cada detalhe da Porta do Inferno - respondeu a outra.

- Só tem um problema, Rogério detesta museus - revelou Márcia - E está sempre com algum compromisso inadiável.

- Por que não vamos somente nós duas? - Propôs Sandra.

Semana passada Rogério recebeu uma longa carta de Márcia. Os meninos já estavam grandes, são homens e precisam mesmo é do pai. Ela sempre sonhou em morar na Europa e sair da rotina. Ficaria em Paris com Sandra.


Texto publicado no livro Mulheres que Somos, de Ana Severo

Ana Severo nasceu em 1964, em Porto Alegre. Viveu a infância e juventude no Rio de Janeiro e Brasília, em função da vida profissional do pai. Já economista, voltou à cidade natal onde reside. Mulher apaixonada, esposa, mãe e avó, dedicou-se por três décadas à Administração Pública do Rio Grande do Sul onde exerceu diversas funções. O amor pela literatura nunca a abandonou. Ler e escrever, se não foram profissão, são paixão. Tem diversos contos publicados nos livros Mulheres que somos, editora AGE (2012), Entre o Sena e o Guaíba (2011) e Porto Alegre dos Casais (2010).

 

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