Contos
O Galo
Carolina Fazollo
A noite já ia alta, mas ele ainda cantava. Tinha um forte e rouco canto que às vezes se transformava num chamado intenso, entrecortado por violentos resmungos guturais.
Fazia jus à fama de sua espécie. Benício se revirou na cama mais uma vez, o colchão tinha se tornado incrivelmente desconfortável. Cobriu os ouvidos com o travesseiro, mas o esgoelar do galo atravessava parede, fronha e algodão. Que fôlego tinha o cretino!
Fazia semanas que ele não dormia direito e era ridículo explicar o motivo. Da primeira vez que contou a história, os amigos riram dele. Quando se queixou com seus pais,
eles fizeram pouco caso do problema:
- Não é possível que um galo incomode tanto, não escuto nada além do ronco do teu pai - disse a mãe. Era porque o quarto dela não fazia limite com o quintal do vizinho, ele
pensou.
Benício era estudante de Direito, não entendia de galináceos, pensava que talvez o galo confundisse a lâmpada com o sol - aquela lâmpada que o vizinho tinha inventado de deixar acesa a noite toda para espantar ladrões. Outra vez encontrou o homem na rua e aproveitou para comentar a situação, mas, como todo mundo, tudo que o vizinho fez foi rir e lhe dar um tapinha nas costas:
- Procure uma namorada, rapaz.
Daí em diante, quando lhe perguntavam por que parecia tão cansado, era obrigado a dizer que andava nervoso com os exames finais ou que tinha virado a noite redigindo seu
trabalho de conclusão de curso. Na verdade, era o galo. O inconveniente e incansável galo.
Naquela noite, o cantor parecia especialmente empolgado. Gritava sem pausa e sacudia as penas com pompa. Benício precisava acordar cedo, ia apresentar o trabalho
definitivo pela manhã. Olhou o celular: três e meia da madrugada. Ergueu os olhos para a janela alta de seu quarto, por onde a luz do vizinho atravessava as folhas de uma goiabeira.
Levantou-se resoluto.
Saiu de casa e pulou o muro baixo que dava para o quintal do vizinho. O terreiro estava claro por causa da luz anti-ladrão e ele viu quando os dois pastores-alemães vieram
farejá-lo, mas, como o reconheceram, não fizeram alarde. Aliviado, ele atravessou o quintal até o galinheiro.
Através da tela de arame, Benício conseguia ver as galinhas todas recolhidas em seus poleiros e o galo ciscando às voltas, as penas eriçadas, dando seu show
espalhafatoso. Enquanto o rapaz estudava o ambiente, o galo berrou mais uma vez: era como se o som cutucasse uma ferida aberta em sua alma. Mas daquela noite o barulhento
não sairia impune, pagaria por profanar o sagrado silêncio da madrugada.
O justiceiro primeiro abriu a portinhola do galinheiro. O galo, curioso, girou a cabeça e fitou-o com um olho só. Os dois se encararam por um instante, como se uma velha rixa
finalmente fosse ser resolvida. Depois ele atiçou os cães. Estava feito. Benício correu para pular de volta o muro antes que a confusão começasse. Assim que desceu no quintal de sua própria casa, já podia escutar os latidos dos cães e o cacarejo esbaforido das galinhas
em pânico.
Quando voltou a se deitar, o silêncio reinava. Benício suspirou sem culpa, os dias de sono interrompido tinham-no transformado em um assassino desalmado. Fechou os olhos e
dormiu em paz.
Carolina Fazollo nasceu em Resende, interior do Rio de Janeiro. Formou-se em Publicidade e Propaganda pela UNIFOA e atualmente é graduanda em Design Gráfico na UNINTER. Ama ler, escrever e fazer trilhas na natureza.
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