Acordei num sobressalto, o coração disparado. Não conseguiria voltar a dormir tão rapidamente, mas já estava acostumada. Só precisava descer até a cozinha, beber uma caneca de chá e esperar a sonolência bater.
Pronta para repetir meu ritual, calcei as pantufas e cuidei para não fazer ruídos ao pisar nos degraus; não queria acordar o resto da família. Tampouco alcancei o piso inferior, senti um cheiro forte de charuto vindo da sala. Fui verificar, como em noites anteriores, se encontrava o proprietário daquele aroma tão característico e familiar.
Um sorriso curvou meus lábios e meu peito se aqueceu enquanto eu me aproximava. Lá estava ele, sentado em sua velha poltrona, vestindo flanela e envolto em uma nuvem de fumaça, iluminado apenas pelo abajur alto a seu lado.
- Olha só se não é a morceguinha fora da cama de novo - murmurou com sua voz rouca e grave. - Já passam das três da manhã, mocinha!
- Eu sei, vô. Acordei sem querer. Já estava indo fazer um chá para voltar a dormir.
- Teve um pesadelo de novo? - perguntou com um muxoxo.
- Sabe que nem sei, vô.
Sentei-me a seu lado e ficamos conversando. Ele perguntou como estavam as aulas da faculdade, os relacionamentos, o trabalho. Respondi a cada pergunta enquanto ouvia histórias, sentindo as bochechas arderem de tanto sorrir. Era impossível não me sentir extasiada com vô Narciso. Seu rosto marcado pela idade não demonstrava exaustão, mas energia e sabedoria. Não havia nada que eu gostasse mais que suas histórias. Eu notava o tempo passar apenas se observasse seu charuto se consumindo com as tragadas.
Infelizmente acabei caindo no sono durante a conversa, deixando-me levar pelo conforto da companhia. Quando acordei naquela manhã, senti o corpo enrijecido de ter adormecido na poltrona.
- Dormiu aqui de novo, filha? - Ouvi minha mãe quando chegou à sala.
Enquanto eu esfregava as mãos no rosto tentando dissipar a sonolência, pude ouvir seus passos apressados até a janela na parede oposta à entrada da sala.
- Credo! Esse cheiro de fumaça de novo? - Depois de abrir todas as janelas e espanar as mãos no ar, foi em direção à estande, abriu uma gaveta e tirou de dentro uma caixa pequena e fina que meu avô ganhara de um amigo no seu último aniversário. - Eu já disse para não mexer nos charutos do seu avô.
Cheguei por trás, enquanto ela abria a tampa e verificava o conteúdo. Lá estavam os três últimos charutos de Seu Narciso. Intocados pelos últimos meses. Minha mãe soluçou e eu a abracei pelas costas.
- Seu avô faz tanta falta - disse, fazendo força para a voz sair pela garganta que eu sabia estar apertada. - Já não é a primeira vez que sinto esse cheiro na sala. Parece que ele ainda senta aqui, fumando e empesteando as cortinas com esse cheiro terrível.
- Eu sei, mãe. Também sinto falta do vovô.
- Aquele velho cabeça dura! Eu pedi tanto para que largasse esse vício maldito, mas no final ele parecia tão bem - choramingou, voltando a guardar a caixa e pegando um porta retrato do seu falecido pai.
Olhei para a foto. Ele sorria como menino arteiro, então sorri de volta em nossa cumplicidade silenciosa. Afinal, era nosso segredo. A única coisa que quase sempre nos entregava era o cheiro do seu charuto.
***
Gaúcha natural de Novo Hamburgo, apaixonou-se por literatura ainda muito jovem e começou a escrever histórias fantásticas. Amando feiras de livros e sebos, investiu no crescimento de sua coleção, seguindo principalmente os mestres Tolkien e C.S. Lewis, além de escritores atuais como Sarah J. Maas, Rick Riordan e J.K. Rowling. Sua paixão envolve tanto fantasia quanto romance, mas recentemente vem buscando aumentar seu repertório, aventurando-se na criação de suspense e terror. Participa do
Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.
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