Domingo, não um daqueles ensolarados, mas um em que o frio o tornava cinzento. A Redenção aos poucos ia sendo preenchida por quem ainda confiava que a previsão do tempo estivesse, pelo menos, meio equivocada. Havia esperança de que uns raios de sol ultrapassassem as nuvens. Espalhados pelo canteiro central da José Bonifácio, entre a Oswaldo Aranha e a João Pessoa, os expositores tentavam vender seus produtos no Mercado das Pulgas, o inspirado e similar ao de Buenos Aires. As mercadorias, antigas ou nem tanto, custavam a sair, eles reclamavam, mesmo assim insistiam e seguiam em lenta espera.
Em frente ao Monumento do Expedicionário, do outro lado da calçada, aos poucos os caminhos de areia iam sendo preenchidos. O tempo passava e eu sentei em um dos bancos, explorava o movimento. Era um domingo especial. Comecei a contar as pessoas 1, 2, 3, 4, 5 e parei, eram várias e todas vinham acompanhadas. Uns empurravam bicicletas tentando manter seus pequenos ocupantes equilibrados. Outros compravam balões que acabavam subindo e subindo em direção ao céu pela inabilidade de quem os segurava. Alguns jogavam bola, dividiam e faziam piruetas com bolas de futebol estilizadas, compravam algodão doce, tentavam pular corda, carregavam bonecas sem muita intimidade, empurravam carrinhos de bebe. No ar sorrisos e choros.
Ontem, dia 12, foi o Dia das Crianças. Pais e mães, orgulhosos, comemoravam com seus descendentes na certeza que são imortais. Seus filhos garantiram a sequência dos seus genes, terão continuidade. Enquanto eles desfrutavam a companhia uns dos outros, de longe, aquela menina observava. Imaginei que teria uns dez anos, no máximo. Malvestida e suja. Descabelada. Só. Uma das tantas crianças abandonadas, sem futuro, sem perspectiva. Eu vigiava e não me contive a uma proximidade. Com um pacote de pipoca nas mãos a seduzi para uma conversa que, na verdade, eram interrogações que eu queria ver respondidas. Me lançou um olhar desacreditado. Depois, se entregou a esses minutos de atenção. Pouco sorria. Agarrou com força e cobiça a embalagem oferecida.
Imersa em sua timidez, contemplava e parecia que nenhum sentimento a emocionava. Apenas olhava o que desconhecia, o que nunca teve no passado, nem no presente e nem terá no futuro. Sequer entende o significado de saudade. Me disse não saber o que é ter um pai, pois nunca teve um, nem conhece bem o significado dessa palavra. Às vezes alguns homens apareciam pelo barraco dividido com sua mãe e vários irmãos, mas eles meramente passavam. Nunca recebeu um afago ou palavra de carinho. Lembra tão somente de momentos tristes e demasiada violência. Entende o sofrimento. Irmãos? Cinco mas desconhece a idade, como não sabe a dela.
A menina olhava interrogativa inundada pelo que desconhecia. Quem sabe aquele seria seu dia de felicidade? Experimentar ser feliz. Afinal ser criança é acreditar que tudo é possível. Talvez alguém segurasse sua mão e a levasse até o parquinho, uma volta no carrossel ou no carrinho de choque. Nunca ganhou um presente sequer simples muito menos bem bonito, bem embalado em folhas coloridas, arrematado com um grande laço de fita. Dia da criança? O que é isso tia? Ela estava ali, quase morava naquele local onde tentava a compaixão dos passantes para ter algo que comer. Gestos ansiosos.
Falava pouco e mal, as palavras saíam erradamente soletradas. Não conhece bem o linguajar. Em tempo algum frequentou escola. Seu olhar meigo, apesar da vivência, é triste e longo, perdido na imagem de um extenso abraço que um pai dava no seu filho retribuído com um beijo estalado. Desses que só as crianças sabem dar. Ela viveu mais um dia, simplesmente, como tantos outros, apenas passando. Permaneceu em seu interior o silêncio de todos os seus segredos. Os que não compartilha. Talvez o sigilo do que nunca começou, da tristeza por nunca ter vivido.
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Nascida em Alegrete, morou no Uruguai, mora em Porto Alegre. Jornalista pós graduada em estilos jornalísticos. Professora, pesquisadora, genealogista. Participa do
Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.
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