Com a semana lotada, conseguiu vinte minutos para ir ao supermercado, no inÃcio da noite de sexta, no fim de semana do dia dos pais. Teve dificuldade para encontrar uma vaga que não fosse no fim do mundo. Para conseguir um carrinho de andar duplo, dos pequenos, esboçou rosnar a uma mulher com olheiras iguais à s suas.
Em frente a uma pilha de pepinos, enxergou a fila do pão, maior que a de um show de rock internacional, porém com gente que não sorria nem estava com sua turma de amigos. Desistiu de encarar, foi aos pães de sanduÃche industrializados, enriquecidos com ferro e zero por cento de adição dessas gorduras que matam.
Passou reto pelo freezer de bebidas geladas e desviou perigosamente dos que portavam sacos de carvão e bandejas de carne. Tomou o rumo oposto aos carrinhos com bebês e suas mães jovens, com a pele e a cintura intacta, e seus pais igualmente lindos, de barba estilosa e desenhada, plantados no meio do corredor, com todo o tempo do mundo. Fingiu não conhecer a colega de trabalho, pois além do assunto infame, não podia atrasar.
O pit stop final, no corredor de guloseimas, foi o que a intrigou. Duas funcionárias contavam a vida uma à outra, a revelia da urgência dos clientes e do patrão. Tentou alcançar a bolacha preferida do filho, com recheio de chocolate, mas o carrinho de abastecimento onde as duas se apoiavam, sorridentes, estava estacionado em frente. Empurrou, pediu ajuda à funcionária, que não a ouviu, ocupada relatando o novo amor.
- Ele me ajuda a criar, busca na escolinha, dá banho, brinca com ele, meu filho até chama de pai.
- Que bacana, tem que ser assim mesmo, afinal pai é quem cria, né.
Ficou com inveja daquelas duas, primeiro por estarem calmas no olho do furacão. Segundo, por uma delas ter um bom companheiro, algo que ela própria não conseguia por mais que tentasse. Sem refletir, invadiu a conversa:
- Se o pai é quem cria, então geralmente o pai é a mãe.
Recebeu o sorriso cúmplice das funcionárias e foi-se, decidida, em prol da dieta dos filhos, sem o tal biscoito, para a fila do caixa. Pois se o pai é a mãe, e se a mãe tem que ser também o pai, acabou-se hoje mesmo o lanche com bolacha recheada, nada saudável e fora dos limites do seu orçamento doméstico de mãe solo. Foi a única a sorrir durante a demora da fila, seu dia dos pães (pai+mãe) seria fenomenal.
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Astúria Vasconcelos é formada em Arte pela UFRGS, atuou como fotógrafa e realizou exposições, atualmente leciona para adolescentes; publicou crônicas e o ebook "Contos de Foda", disponÃvel na Amazon. Participa do
Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.
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