Maus Trapos e a Morte
 



Contos

Maus Trapos e a Morte

Rafael Figueiredo


A morte de Zé Cartola havia se dado de forma inesperada. Três tiros à queima roupa em um bar da cidade. O corpo ficou estendido na calçada por algumas horas, nem polícia nem amigos, até a chegada de Neco, irmão de sangue e sina do defunto.

Ao ver a carcaça fraterna, mal deitada entre o passos e a indiferença pública , Neco Sabará passou os braços por debaixo das costas de quem era antes Zé Cartola, e o carregou até o local em que se deixavam os defuntos estorvos, para devidas providências. Os homens que exerciam a função de estar ali receberam com ares fidalgos o corpo de José da Silva Benedito. E em poucas horas, sem qualquer curiosidade, encaminharam o morto para o enterro. A cova rasa cavada às pressas por dois homens sem qualquer relação com o defunto, além daquela que se tem com todos os mortos, abraçava o caixão como uma mãe ao filho perdido.

Fora o irmão, e os coveiros que já faziam passos de retirada, não havia mais ninguém para dizer qualquer palavra em despedida ao cadáver. Mas Neco Sabará não deixaria que mais um silêncio contemplasse aquela morte prematura, e foi logo sacando da garrafa guardada no bolso esquerdo do casaco, e na ocasião plena de vodka barata. Bebeu um gole e derramou um pouco no chão. Olhou o céu, era noite, respirou fundo e decidiu dizer o que lhe viesse à cabeça:

- Eis aqui a sina de tudo que é vivo, irmão. E o verme que espreitava silencioso, agora desperta, arquiteto de toda miséria, em ruína festiva comemora tua desventura...

As palavras de Neco Sabará, o poeta dos maus trapos como era chamado pela cidade, eram uma herança de sua avó materna, vinda de Lisboa, que pouco falava se não fosse em versos.

- Os mortos mantêm silêncio mais confortáveis que os vivos, é o que se acredita. Mas a fé é coisa nossa, daqueles que ficam, não pode um morto ter fé, já cruzou a linha do desconhecido, acreditar é o luxo da nossa ignorância, que cultivamos com prazer e caprichoso empenho...Por isso, espero que descanse em paz, irmão, que aqui tudo seguirá sem ti como seguia contigo, para os outros. A mim ficará o remorso atrasado dessa velha quinquilharia de ossos...

Neco deixou a garrafa ao lado da cova e seguiu para o velho carroção. Olhou para o céu, havia estrelas aquela noite, e tudo que ele sabia delas, era que muitas também já estavam mortas. Ele sorriu e por um instante o universo havia se reconstituído.


***

Rafael Figueiredo nasceu em 1985 e hoje reside na cidade de Sapiranga. Foi aluno do professor Marcos Maronez com quem iniciou seus estudos em violão, piano e composição. Começou a escrever peças teatrais ainda na escola. Participa do Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.


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