Contos
Dentim
José Vecchi
Não tive escapa. Ele veio direto em cima de mim, véio, balançando o corpo, já tava daquele jeito. Tive que enfrentar a zoeira no meu ouvido, a lengalenga de sempre, porra, a receita médica na mão, o bafo da birita e o pedido de uns trocados. É foda, Dentim tinha aquela mania de chegar bem perto, falar e pôr a mão no ombro da gente. Não deu outra, pra fugir do bafo e da chuva de cuspe abri a carteira e dei logo uma nota de dez. Fez um “tinindo” e saiu todo todo.
Fiquei olhando ele cambaleando pela calçada. Eu já sabia aonde ia se meter. Ainda tentou parar o próximo que vinha na correria. O cara desviou, nem deu confiança. Dentim tava acostumado com isso, seguiu em frente mostrando a receita pra todo mundo que passava. Era umas sete e meia. Ele contou a grana, atravessou a rua e sumiu. Foi pras quebradas atrás de uma brita, sacou?
Zanzava por aqui há um ano, mais ou menos. Antes andava por outras bandas, onde rolava mais grana, mas puseram ele pra correr de lá. De vez em quando eu pago um rango, de dia, quando ele tá legal ainda. Aà ele é caladão. Come e vai sem encher o saco. Mas gosta mesmo de ganhar um money pra pedra e pra cachaça.
Eu lembro dele de muito tempo, jogava fácil, mas fudeu o joelho, vĂ©io, já era. Isso aqui era uma vila, umas casinhas simples, ele morava depois do final da rua, num barraco no meio do pasto. O dono vendeu as terras e agora Ă© shopping, padaria, escola, banco, prĂ©dio e mais prĂ©dio. Aquelas casinhas, já era. Os lotes vagos, tambĂ©m. Bicho andando na rua de noite, nĂŁo tem mais isso, cara. Agora Ă© gente pra lá e pra cá, correria, ronco de carro, moto, sirene, e o caralho a quatro. Olha sĂł a calçada, porta de banco, de loja, tudo lotado de gente pedindo, uma doideira. Fico pensando, mas nĂŁo entendo essa porra. E ainda por cima tem a turma do Dentim. Tá foda. Eles tĂŁo dando mole porque tem uma galera aĂ barra pesada que tá de bronca, já viu, nĂ©, cĂŞ sabe como Ă©. Eu nĂŁo ligo, saio do banco no fim do dia, ajudo um ou outro. Fico em paz com Deus e com eles. Minha polĂtica, sacou?
Mas olha só, não falei dos barra pesada? na mosca, naquele dia mesmo, cheguei em casa, tomei um banho, dei um tapa num beck e fiquei de boa na TV. Aà horrorizei, cara, o jornal mostrou que um carro passou lá na boca, cuspiu bala e saiu cantando pneu, dois no hospital, seis no chão. Foda, Dentim tava lá, cara, se fudeu, já era. Agora nem receita, nem birita, nem porra nenhuma. E eu dei dez reais pra ele no dia, cara, tô mal, é foda. Não é porque morreu, véio, mas o cara era gente boa, né não?
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