Contos
Olho por olho
Maria Christina de Mello Amorozo
Era hoje o dia. Já fazia tempo que Gedel estava com isso na cabeça, mas desanimava; eram muitas as exigências, um monte de burocracia, tinha que tirar licença e não sei que mais, e ficava caro. Agora, não. Com esse decreto do presidente, dava até prá comprar pela internet. Mas ele preferiu ir até a loja e escolher pessoalmente. Tinham lhe indicado uma, não muito longe do local onde trabalhava.
Saiu um pouco mais cedo do trabalho, o coração acelerado. Entrou na loja e o vendedor lhe apresentou vários modelos, explicando as especificidades de cada um. Mostrou como manusear e deixou que Gedel experimentasse. Garantiu que era bem fácil; e se tivesse dúvidas, o manual que vinha junto explicava tudo direitinho. Gedel nunca tinha empunhado uma antes. Foi uma sensação estranha a princípio, mas logo gostou, sentiu-se poderoso. Por fim, decidiu-se por um modelo que o vendedor recomendou, por ser simples de manusear, confiável, e, além do mais, estava em oferta aquele dia. Compensou: no fim, nem tinha ficado tão caro, como temia Gedel. O dono da loja ainda facilitou o pagamento, em dez vezes sem juros no cartão. Ia apertar um pouco o orçamento familiar, mas não muito.
Saiu da loja de peito estufado. Foi caminhando até a estação de metrô mais próxima, consciente do peso da sacola que carregava. Eram duas caixas, uma grande e outra menor. Custava a acreditar que tinha conseguido. Sentia-se orgulhoso por isso. A segurança da família estava garantida.
Aproximava-se o fim da tarde, era a hora de mais movimento no centro. Gedel não conseguiu pegar o primeiro metrô que passou, estava lotado. Começou a ficar impaciente. Era um longo caminho até em casa e estava louco para chegar e abrir os pacotes. Claro, não poderia fazer isso antes das crianças dormirem. Já tinham conversado a respeito, ele e a Clotilde.
Desceu na Estação da Luz, para pegar o trem do subúrbio. Incorporou-se à multidão cerrada que se dirigia às plataformas, abraçado à sua sacola. Em pé, equilibrando-se no vagão, apertava-a contra o corpo, e de vez em quando olhava para ela, como que para se certificar que estava lá. Tanto cuidado chamou a atenção de dois homens a certa distância, separados dele por algumas camadas de passageiros. Foram se aproximando aos poucos, e um deles conseguiu, entre os corpos que se dependuravam como frangos na feira, ler um trecho do que estava escrito na sacola. Ah, então é isso
Fez um sinal para o colega. Quando Gedel desceu, na penúltima estação, os dois desceram atrás.
Estava escuro e ele não percebeu nada. Quando atravessavam uma viela deserta, os homens abordaram a vítima, exigindo que lhes passasse a sacola. A princípio, Gedel não entendeu. Estava distraído, antecipando a hora em que iria desfazer os pacotes e manusear sua recente aquisição. Olhou para trás e viu os sujeitos bem perto dele. Não ia entregar a arma, não depois de tanto tempo sonhando com ela. Viu que os dois estavam desarmados, então correu e se escondeu em um beco. Começou a abrir os pacotes, aqueles dois iam ver, ia inaugurar seu revólver com eles, era legítima defesa. Mas não soube como carregá-lo. Os dois partiram para cima dele e o derrubaram. Um dos homens pegou o revólver, com toda a calma inseriu as balas no tambor, e apontou o cano para Gedel. Puxou o gatilho mais de uma vez. Os dois se afastaram, deixando-o estirado no chão.
***
Maria Christina de Mello Amorozo foi docente e pesquisadora da Universidade Estadual Paulista, Campus de Rio Claro, SP, onde atuou nas áreas de Ecologia Humana e Etnobotânica. Depois de encerrada a carreira acadêmica, dedica seu tempo ao aprendizado da escrita literária.
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