Crossroads Blues
 



Contos

Crossroads Blues

Marina Mainardi


Esse é o problema de curtir música local – bandas de rock e blues tocaram em um bar quase fora da cidade e, já perto da meia noite, os ônibus pararam de passar. Lúcia saiu sóbria o suficiente para saber ir para casa a pé – mas não o bastante para saber que era má ideia.

Começa a pigarrear e tossir um pouco e pode ver o vapor da sua respiração na luz fraca da rua. A garganta já dolorida por gritar e cantar alto a noite toda. E o frio não está ajudando. Fecha bem o casaco – meio grande para ela, chega até os joelhos – e puxa o capuz o mais baixo que pode. Caminhando um pouco mais devagar, passa a mão na garganta, dá de ombros e pega um cigarro.

Ela não tem um isqueiro, mas no bolso esquerdo do casaco ainda está a caixinha de fósforos do bar. Acende um, dois, cinco fósforos. E, toda vez, a brisa os apaga na hora. Lúcia não exatamente desiste, mas acabam os palitos e ela já está cheirando a fósforos queimados, então guarda o cigarro.

Não demora para que toda aquela cerveja faça efeito e ela precise de um banheiro rápido. Com tudo ao redor fechado, não há muita escolha. Logo adiante, bem ao lado de uma encruzilhada, vê uma enorme figueira na borda de uma praça. Não é o ideal, mas... Olha ao redor e está tudo deserto. Mesmo que alguém passe, não a enxergará no escuro.

Aliviada, sai de trás da figueira e congela no lugar. Um rapaz, talvez adolescente ou jovem adulto – certamente mais alto que ela –, está no meio da encruzilhada de costas para Lúcia. A adrenalina a deixa sóbria em um instante e, enquanto decide entre correr ou voltar para trás da árvore, é tarde demais. Ele se vira e a vê ali, imóvel.

– Você veio. – Diz Roberto, dando um passo para trás. Ele abre a boca mais uma vez, mas não produz nenhum som.

Lúcia, decidindo que não conseguiria correr mais do que ele, tenta esconder o medo e pergunta ao rapaz o que ele quer. Cada palavra arranha sua garganta, mas ela consegue manter a voz calma.

Sem postes de luz acesos na encruzilhada, Roberto não pode ver o rosto da garota. Mas a voz que sai de dentro do capuz preto é rouca e instável. Ele respira fundo e tenta, sem sucesso, parecer confiante ao perguntar como isso funciona.

Lúcia continua parada, esperando algum tipo de explicação. Ao perceber que não teria nenhuma, franze a testa e volta a perguntar o que ele quer. O homem dá um passo lento à frente, mantendo uns dois metros entre eles, e ergue com a mão direita um objeto que, no susto, Lúcia não havia reparado ainda.

A mão que segura o violão treme um pouco, Roberto torce para que não seja perceptível. Abrindo a boca para responder, sente um leve cheiro de queimado, como fumaça, que faz sua voz vacilar. Mas sua decisão foi tomada no instante em que saiu mais cedo do concerto, desanimado com o próprio desempenho e invejando os outros músicos. Não pode voltar atrás. Explica que quer talento e faria qualquer coisa, está disposto a trocar sua alma por isso.

Erguendo as sobrancelhas, Lúcia não pode evitar uma pequena risada nervosa. Considerando como explicar a situação, diz ao rapaz que não quer sua alma. Ele hesita e decide não se aproximar, mas suplica com uma voz trêmula. Lúcia não resiste e, contendo um sorriso, estende a mão para que lhe entregue o violão.

Vendo a mão estendida, Roberto arregala os olhos e prende a respiração involuntariamente. Aproxima-se o mínimo possível e estende o braço receoso, quase derrubando o instrumento quando a moça passa uma unha afiada nas costas de sua mão.

Por mais que goste de música, Lúcia nunca teve aulas ou sequer pegou num violão; mas, achando que seria anticlimático apenas dizer algo ou estalar os dedos, começa a mexer nas tarraxas como se o estivesse afinando. Percebe que o rapaz a observa atentamente, mas evita olhar em seu rosto. Ela o instrui a afinar de novo antes do amanhecer. Lúcia estende o braço para devolver o violão, mas o puxa de volta por um momento e adiciona:

– Não seja cretino, ou coletarei antes do tempo.

Roberto abre a boca para consentir, mas a mulher ergue uma mão, a palma virada para ele, o silenciando. Com aquela voz rasgada, o ordena que vá embora por onde veio e não olhe para trás.

O rapaz sai correndo e Lúcia se apressa para trás da figueira, caso ele não resista à curiosidade de uma última olhada. Fica ali abaixada por alguns minutos e, só então, arrisca uma espiada na rua. Certa de que está sozinha, sai de trás da árvore.

Vira as costas e está prestes a seguir seu caminho quando ouve alguém limpando a garganta, como que para lhe chamar atenção. De súbito, envolta pelo cheiro pungente de enxofre, vê um homem casualmente apoiado na figueira da qual Lúcia acabara de sair. Ele usa um terno todo preto e chapéu inclinado para o lado. Apesar de não ver nada em seu rosto, além dos olhos, que ardem como fogo, Lúcia ouve o sorriso em sua voz quando o homem diz:

– Você leva jeito para a coisa.

***

Natural de Porto Alegre, Marina Mainardi é formada em Ciências Biológicas pela UFRGS. Sempre com muito interesse nas diferentes formas de se contar histórias (desde livros e filmes até games e músicas), costuma escrever contos focando no mistério e fantasia.

Revisão e leitura crítica de Mitcheia Guma.

 

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