Contos
Um dia de sol
Ana Maria Bettini
Abro a janela e vejo Dona Borboleta colorida voando de flor em flor, abelhas acumulando o néctar sobre suas perninhas frágeis e os beija-flores batendo suas asas sem que se consiga vê-los, parecem flutuar no ar.
Tudo brilha.
Mesmo assim tomo o café correndo e vou para a escola. Pego o ônibus cheio com minha mãe e desço. Que droga, seria tão melhor se eu pudesse brincar hoje!
Meus colegas me olham e nem me dizem bom dia, ainda bem que a Ciça é minha amiga e vem pulando me ver.
― Oi, e aí, você conversou com sua mãe? Vai poder ir na minha casa sábado?
― Não sei, eu falei, mas ela nem me ouviu, estava fazendo o jantar e cuidando do meu irmão que só sabe chorar.
― Oh Lila, vê logo isso aí, preciso de você para fazer brigadeiro e jogar vídeo game.
O sinal bate e vamos para a sala fria, a cadeira dura e eu louca de vontade de olhar para fora. Por que as nuvens voam? Quem sabe não daria para sentar nelas. Como eu gostaria de sair flutuando num tapete voador e ir para a Austrália brincar com cangurus. Eles são tão fofinhos! Eu iria com aquele moletom que tem um bolso grande na frente e brincaria de fazer de conta que era a mãe deles.
Me transporto para a Austrália, já estava lá quando ouvi alguém batendo. Era a professora com a mão na classe.
― Presta atenção!
Dei um pulo. Ouvi, baixinho, a risada dos colegas.
Olhei para o quadro, não entendi nada do que estava escrito e nem quis perguntar, pois sabia que eu deveria ter prestado atenção desde o início. Mas pra que serve aquilo? Eu gostaria que os números me levassem a construir uma nave espacial e ir para a galáxia de Desdron enfrentar os gogluns e libertar o povo de kat, seres parecidos com a gente só que com cara de gato. Os gogluns tem cara de pitbuls e vivem ameaçando o planeta deles.
O sinal toca para a próxima aula e Rebeca vem falar comigo.
― Oi Lila, comeu suas vinte rosquinhas hoje?
― Eu não como vinte rosquinhas.
― Ah, então devem ter sido os hambúrgueres. Olha, o seu uniforme vai estourar!
E daí elas começam a rir, cantar e dançar o funk.
― Uh gorduchinha, Uh gorduchinha, vem aqui, vem aqui pra entrar na linha, uh gorduchinha.
Isso eu ouvia todos os dias, aliás todo o tempo em que eu estava na escola. No início eu queria só chorar. Agora eu tento ignorar mesmo com um nó na garganta.
O sinal para o recreio toca, eu vou para o pátio, acompanhada da minha amiga.
― Vamos lá no bar pegar umas coxinhas, trouxe dinheiro?
― Sim vamos! Eu trouxe dinheiro e também o lanche de casa.
Depois do intervalo a aula segue até de tarde e eu querendo ir para casa, brincar um pouco, assistir TV ou simplesmente abraçar a minha mãe e ficar junto com ela e meu irmão lendo uma história, mas era segunda e depois da aula eu tinha inglês.
Segunda e quinta inglês, terça e sexta aula de canto, quartas e sábados reforço com a professora particular.
Minha mãe me pega no inglês, me dá um beijo, me pergunta se estou bem eu respondo que sim, não queria incomodar e deixar ela mais chateada, vi ela chorando escondida outro dia.
Ela chega em casa, deixa as compras sobre a mesa, coloca as roupas na máquina e me manda ir tomar banho, eu quero só ver se os kats irão vencer os gogluns e ouço um grito. Vai tomar banho que depois você tem que fazer o dever e jantar.
Mas vai acabar daqui a pouco, não vou.
Ela desliga a TV, ameaça o castigo.
Depois do banho e enquanto ela prepara o jantar eu me sento, coloco os cadernos e os livros sobre a mesa e não consigo entender muito bem os problemas de matemática que tenho de resolver. Aliás, aqueles não eram meus problemas, eram do professor e do livro, por que eu tenho de resolver isso?
Minha mãe para tudo e tenta me explicar, reclamando da escola.
― Mãe, eu posso ir na casa da Ciça?
― Se você se comportar até sexta pode.
― Posso dormir lá?
― Se você melhorar suas notas de matemática talvez um dia.
Quando termina a aula de reforço corro para a casa da Ciça, preparamos brigadeiros, pão de queijo e pipoca.
Não podemos ir no jardim, pular corda e nem tinha mais crianças além de nós para brincar de esconde-esconde.
Lá fora chove.
Aqui no meu peito uma vontade de sol.
Meto a colher no prato de brigadeiro.
Na boca, enquanto o chocolate se desmancha, sou feliz.
***
Ana Maria Bettini é paulistana, mas mora e trabalha em Porto Alegre/RS há mais de vinte anos. Formada em Artes Plásticas pela UFRGS e pós-graduada em Design de Superfície pela UNIRITTER. Foi bancária e professora de Artes, atualmente dedica-se exclusivamente a ilustrar e escrever livros para infância e adolescência. O Gatinho Preto foi seu livro de estreia, publicado pela editora Metamorfose em 2017.
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