A paz tem cor
 



Contos

A paz tem cor

Marta Helena Xavier


O barulho da chuva fez Érica sorrir. Era sábado, não precisava sair da cama correndo. Até porque, nas últimas semanas, o sono teimava em não deixá-la. Afofou o travesseiro, virou de lado e despudoradamente se entregou à preguiça. Ficou ali recapitulando sua felicidade. O dia que conheceu João, suas longas conversas no pátio da faculdade, a primeira vez que se amaram, até a mudança para o apartamento recentemente alugado. A construção de uma vida a dois se iniciava.

No eco de suas lembranças, ouviu o silêncio do chuveiro. A porta do banheiro se abriu e junto vieram os passos de João, o cheiro de seu desodorante, a náusea, a corrida até o banheiro e o vômito. E assim foram os dias seguintes, qualquer coisa a enjoava e muitas vezes não conseguia evitar o vômito. Resolveu então fazer o teste: dois riscos, positivo.

Andava desconfiada, mas a certeza é diferente. É concreta, tem forma, é definitiva. . Sabia que não era o melhor momento. Planejavam um filho para depois de terminarem a faculdade, quando ambos seriam promovidos em seus empregos. Mesmo assim dariam um jeito, sabia que João ficaria feliz.

Saiu de casa para o trabalho com tudo planejado. Compraria um par de sapatinhos de bebê, faria um jantar especial à luz de velas. Tudo perfeito para contar a novidade. Aquela noite era ideal, as aulas terminavam mais cedo. Já na calçada decidiu pegar o ônibus mais adiante, queria comprar os sapatinhos.

Duas quadras depois Érica entrava na loja de roupas infantis, seu rosto era um só sorriso. Logo o balcão estava tomado por minúsculos pezinhos de tricô, de todas as cores,perfumados,faziam cócegas em seu nariz. Depois de muitas dúvidas escolheu um de cor branca, traduzia toda a paz que sentia naquele momento.

Saiu da loja com o pequeno pacotinho na bolsa. Apressou o passo, começava a se atrasar. Chegou ofegante no ponto do ônibus. Logo estava acomodada junto à janela, próximo ao fundo do coletivo. Encostou a cabeça no vidro e começou a sonhar. Custou a perceber o rapaz com uma arma na mão, logo à frente, no corredor do ônibus. Tudo foi muito rápido, o anúncio do assalto, o homem ao seu lado levantando, os tiros, os gritos, a escuridão, o silêncio.

O dia seguinte estava ensolarado, mas João sentia o frio por debaixo de sua pele. O vento sussurrava um lamento infinito nos seus ouvidos. Seus pensamentos eram cortados pela dor. Poderia ser tudo mentira, quem sabe um pesadelo. Mas não era. Vivia a pior das realidades, a que não sonhamos; aquela que nunca acontece com a gente, a que costumamos ver por detrás da tela dos telejornais.

Ele estava ali, com Érica aos seus pés, coberta de flores. João não se mexia, só olhava, com medo de pisar no chão que abrigava seu amor. Seus olhos estavam secos, não sabia chorar este tipo de dor. Lembrou do sorriso de Érica, de como ela estava mais bonita nos últimos dias. Parecia mais inquieta, misteriosa. Tinham se amado tanto naquela manhã! Era capaz de sentir o seu perfume, o calor de seu corpo.

Todos se foram. João ficou só. Com a ponta do sapato esfregava o chão. Queria uma resposta, uma justificativa para o que lhe acontecia. Mas o solo estava mudo, nada dizia. Ao longe o barulho dos carros, da rua, da cidade. A vida dos outros seguia inabalável. Aos poucos o corpo de João foi dando sinais. Suas pernas, a contra gosto, lhe tiravam dali. Viu-se na direção de seu carro. Enfiou as mãos nos bolsos e encontrou os sapatinhos de bebê. Colocou os dois na palma de uma de suas mãos. Eram brancos, brancos como a paz. João finalmente conseguiu chorar.

***

Marta Xavier é enfermeira, foi empresária por quatorze anos, dirigindo uma clínica geriátrica. Escreve de forma amadora desde a adolescência. Cursou oficina de Crônicas na Metamorfose, com o escritor Ruben Penz, e está fazendo o Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose.

 

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