Contos
O prego
LuÃs Henrique Reis Volkart
A realidade que conheço é esta, minhas lembranças estão resumidas a vivência neste limitado espaço e as histórias que me contaram. Vivo dentro desta caixa cercado por ferramentas de todos os tipos. Fui condenado a ter uma vida sem graça e cruel. Nasci prego. Objetos somente lembrados quando se necessita. Não sou bonito, minha cabeça é pequena, desproporcional ao resto do corpo. É achatada, transmitindo a impressão de ser bem menor do que parece. Sou de uma coloração cinza mórbido. Não tenho atrativos, terminarei um dia cravado em um pedaço qualquer de madeira sem prévias apresentações. Reconheço não ser vocacionado para a beleza.
Não venho de uma famÃlia nobre, não sou feito de aço inoxidável como alguns de minha espécie. Sou resultado da fusão de diversos materiais, sucatas. Tenho vergonha de dizer, estavam em seus últimos dias, não tinham mais utilidade. Eram materiais doentes, quebrados, amassados, de segunda categoria, ou mais. Sou de tamanho médio, nunca irei crescer, é a vida, tento me conformar, mas é difÃcil. Vivo sozinho, todos meus amigos já se foram, nunca mais tive notÃcias. A falta de informação me angustia, cada vez mais mergulho em uma depressão sem volta, sinto-me desintegrar aos poucos. O que posso fazer? Viver uma longa sucessão de dias e noites tediosos.
Pam, pam, pam, pam, pam.
Tenho medo desse som seco de batidas que escuto diariamente. Cada vez está mais alto.
Sinto falta de conversar com alguém. Não consigo dialogar com as ferramentas, é um grupo fechado, falam um idioma indecifrável. Quando estou perto delas sinto uma ausência, uma escassez de conexão. Sempre se afastam quando me aproximo. Há mais pregos aqui dentro, mas sou o único que permanece inteiro. Sinto-me como o último remanescente de minha espécie. Os outros estão esquecidos lá no fundo da caixa. São pregos que retornaram após alguns anos de inteira dedicação ao seu destino. Não gosto deles, são tortos, quebrados, têm a cabeça deformada pelas marteladas que sofreram. Alguns voltaram totalmente
loucos e alienados. Costumam falar sozinhos, impossÃvel entendê-los. Outros parecem ter sofrido lobotomia. Perderam a vontade de viver, ficam pelos cantos com um olhar que não retém as coisas e murmuram frases desconexas. Ouvi dizer ser em razão das fortes pancadas. Há os que sonham com a fusão com outros materiais que culminará com o fim derradeiro. Para completar, ainda tem aquela doença misteriosa e degenerativa, sei que não tem cura. Alguém um dia me contou tudo sobre ela. É contagiosa, corrói aos poucos. A pele fica em um tom marrom meio amarelada. O corpo deforma-se, feridas em alto relevo brotam por todos os lados, o fim é doloroso e lento. Mantenho o máximo de distância de quem desconfio estar infectado, se é para terminar assim, prefiro ficar sozinho em meu canto.
Pam, pam, pam, pam.
O som, parece me perseguir, é interminável. O chão até vibra, eu tremo.
O destino de um prego é ser martelado na cabeça até penetrar em um pedaço de madeira, à s vezes concreto, o que, convenhamos, é bem pior. Há relatos de que alguns se quebraram ao meio ao tentar furar esse tipo de material. Outros perderam a cabeça. Dizem ser uma cena horrÃvel. Nunca vou querer presenciar coisa igual. O martelo é nosso pior inimigo. Sujeito violento, não tem dó. Seu único objetivo é o de sempre atingir a cabeça com golpes fortes e precisos. Ser repugnante, sente prazer em desferir repetidas pancadas até terminar seu trabalho. Em ocasiões, atinge apenas uma vez de forma certeira e fatal. Em certa oportunidade vi um muito próximo aqui na caixa. Ainda bem que eu estava atrás de um velho alicate com uma perna só. Permaneci horas observando seu comportamento e tentando imaginar qual a razão de seu ódio contra nós, simples e inofensivos pregos. Confesso que foi a vez que senti mais medo em toda minha vida. Pensei em fugir, mas só o fato de encarar o mundo lá fora me deixa aterrorizado. Sinto como se do outro lado houvesse um grande animal com garras afiadas pronto para me pegar.
O que salva nossa existência é que temos um sonho. Sim, apesar de nosso destino já ter sido traçado, todos temos o mesmo desejo. Alguns desconversam e dizem estarem satisfeitos em relação ao que são. Mentira, pura hipocrisia. A grande verdade é que o maior desejo de todos os pregos é ser parafuso. Sim, um parafuso.
É algo impossÃvel, mas sonhamos com isso cada minuto de nossas vidas. Nutrimos emoções confusas, os invejamos e admiramos ao mesmo tempo, eles são bonitos, elegantes. Têm curvas perfeitas, calculadas milimetricamente por seu criador. Elas proporcionam a sensação de constante movimento aos seus corpos. Robustos e fortes, não têm fraquezas, orgulham-se do que são. Suas cabeças são simétricas em relação ao resto do corpo. O cabelo é sempre repartido ao meio o que transmite ar de superioridade. Alguns ainda têm dividido em quatro partes, é o máximo da beleza estética. Estão sempre em embalagens mais bonitas e ajeitadas. Nós não, somos colocados em sacos plásticos espremidos uns contra os outros. Sempre há os que tentam fugir por pequenos buracos.
Pam, pam, pam.
Por favor, alguém faça isso parar!
Os parafusos não têm inimigos como nós, pelo contrário, têm um aliado, a chave de fendas. O martelo nem chega perto. Não, não, é proibido. A chave de fendas os trata sempre com carinho, não há violência alguma em seu relacionamento. O encaixe é perfeito em suas cabeças. O movimento é executado em pequenas voltas que lembra a dança entre dois amantes. Quando penetram na madeira, pequenos filetes do material serpenteiam seus corpos. É uma união perfeita que dura até completar seu objetivo. Os parafusos desfrutam de mais uma vantagem, que inveja, a do reaproveitamento. Algumas vezes a chave de fendas os convida para dançar mais uma vez, só que agora em sentido oposto. Dizem que dá vontade de chorar de tanta emoção ao vislumbrar essa cena. Retornam intactos, prontos para repetir tudo novamente. E quando acontece a união com a bucha. Que magnÃfico. Penetram suavemente até chegar ao fundo. A bucha, por sua vez, os recebe carinhosamente, abrindo-se conforme o parafuso executa movimentos circulares dentro dela. Ela envolve cada curva e acolhe com ternura aquele corpo perfeito. E tudo isso sempre com a ajuda da grande aliada, a chave de fendas. Tem horas que preferia que nunca tivessem me contado isso.
Pam, pam...
Meu corpo treme, tudo treme aqui dentro.
Certa vez estava próximo de um parafuso aqui na caixa. Sua imponência fez com que eu sentisse toda minha insignificância. Senti medo, inveja e admiração, tudo ao mesmo tempo, uma confusão que me deixou zonzo. Queria desaparecer, sumir para sempre, nuca ter existido. Então, de repente, ele não estava mais ali. Foi nesse instante que todo o peso do que sou desabou sobre mim. Como uma concha, me fechei, recolhi meu ressentimento e frustração, um simples prego.
Como é difÃcil lidar com esses sentimentos ambÃguos. O desequilÃbrio emocional que tudo isso provoca aniquila qualquer um. Tenho que confessar que isso me corrói por dentro e provoca um doloroso vazio. Acho que deve ser pior do que aquela doença misteriosa que nos ataca. Mas no fundo tenho que me conformar com minha existência de prego, não tem volta. Só desejo que quando chegar minha hora, que venha somente com uma pancada, violenta, certeira e fatal.
Pam.
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LuÃs Henrique Reis Volkart. Formado em Letras e especialização em Literatura Brasileira, Filosofia e cursou Educação FÃsica. Participou de algumas oficinas de escrita criativa e fez diversos cursos na mesma área. Atualmente participa do Curso Livre de Formação de Escritores.
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