— Chega de me fazer sua prisioneira. Me solta e serei sua escrava!
Do nada, brotou aquela voz feminina, suave e ao mesmo tempo cheia de autoridade. Olhei para os cantos da biblioteca às minhas costas, para a frente, para os lados, para cima, para meu caderno de anotações: só havia o branco. O do papel, o das paredes da sala de leitura e o branco frio e leitoso da luz de led. Ninguém ali. Só eu, meu caderno e minha velha Parker 21, dourada e preta, presente de meu pai — um grande contador de histórias — quando passei para o último e quarto ano da escola primária, aos onze anos.
Nem sei como durara tanto a caneta, considerados meus mais de sessenta anos. O fato é que eu adorava desenhar as palavras com ela. Bordá-las com sua pena me ajudava a dar um azimute, um rumo certeiro a cada frase, um enredo completo para cada parágrafo, um brilho especial a cada texto fechado, fosse uma carta, um poema, uma crônica, um conto. Para além disso, eu considerava atrevimento demais tentar.
—Seu pensamento é ridiculamente limitado! Me deixa solta, vai? Deixa eu ajudar você! —, insistia aquela voz suave e musical. Já não havia mais dúvida: era a Parker 21 falando comigo.
— Me solta e lhe dou a história que você busca faz anos!
Um incidente fantasmagórico ou alucinação minha? Em que raio de etapa da minha vida estaria eu entrando? Surpreendeu-me ver que ela sabia de minha perseguição por uma história, uma que fosse, capaz de fazer com que eu me sentisse escritor.
— Se continuar nessa toadinha romântica não vai dar tempo. Me libera e eu escrevo rápido, com gana, glamour, frenesi e estilo a história de que você precisa.
Com muita delicadeza ergui a caneta e a coloquei diante de meus olhos. Fixei nela o olhar, curioso, assustado, inquieto. Não sei por quanto tempo. O tilintar da sineta me tirou daquele estranho transe. Quando me dei conta, estava descendo a escada do grupo escolar Conde do ParanaÃba. Naquele dia, excepcionalmente, meu velho me buscou. Estava elegante como sempre, com seu terno azul-marinho bem cortado e seu inseparável cigarro Continental. O velho me cumprimentou por meu aniversário com um abraço bem forte. Depois, como se fosse meu motorista ou um criado e eu alguém famoso ou algum prÃncipe, fez uma reverência na frente de todo mundo, me abriu a porta traseira de seu Bel Air 1955, vermelho e branco de para-choques niquelados e, passando por um incrÃvel e maravilhoso túnel de luz me levou de volta para nossa casa.