Sem Fantasia
 



Contos

Sem Fantasia

Alexandre Silveiro do Canto




Desceu a escada do avião e colocou o pé direito na pista da base aérea. O joelho doeu. Esquecera do estilhaço naquela perna, deveria ter pisado com o outro pé. Apesar de a dor ser quase contínua, não se acostumava.

Era o último a descer. Olhou por um instante os soldados que se retiravam, capengueando, com as bagagens a tiracolo. Apressou-se a também deixar a pista. Não havia parentes para receber nenhum deles. A guerra não acabara, tinham apenas desmobilizado aquele regimento. Ganhara uma licença inesperada. Fora uma volta apressada, sem tempo para avisarem as famílias.

Dois anos antes, a convocação também o pegara de surpresa. Sabia da mobilização do pessoal da reserva, lógico, mas achou que demoraria mais para chegar na sua cidade. Lembrou do pânico; do pensamento mágico que seria dispensado na última hora; dos enormes olhos verdes da esposa pela janela do ônibus, se despedindo, quando a viatura do Exército se afastava; da sensação de irremediável solidão no avião que deixava o país.

Agora pegava o ônibus perto da base aérea para voltar para casa. A paisagem não mudara muito. Algumas casas viraram prédios, um shopping fora construído. À medida que rodava para os bairros mais afastados, a paisagem era cada vez mais semelhante à que lembrava. O ônibus estava quase vazio, e as poucas pessoas o olhavam de soslaio. Seria porque sua presença evocava a lembrança da guerra? Talvez nem fosse por isso. Um negrão de quase dois metros de altura com a farda do Exército chama mesmo atenção.

Tentou se acomodar no banco, o joelho doeu de novo. Aquele ferimento iria demorar para resolver. No dia em levou o estilhaço de morteiro na perna estava há mais de 12 horas deitado no chão, sem comer ou dormir, com terra e pó nos olhos, na boca e no nariz. Pensou nas histórias de guerra que já lera, do clichê de que os soldados ficam com "o cheiro de sangue impregnado nas narinas". Balela. O pior mesmo era o cheiro podre do barro velho, da lama estagnada. Quando ouviu o assobio fininho se aproximando, fechou os olhos e esperou. Ato contínuo, veio o estrondo, o deslocamento de ar que o chutou cinco metros longe, a nuvem de terra e pedras que lhe caiu por cima. Na verdade não fora um estilhaço que o atingira, e sim a energia e o material deslocados na queda do projétil. Claro, se um morteiro daqueles tivesse lhe atingido, seria agora apenas uma medalha, não estaria ali descendo a rua com a perna doendo. Mesmo assim, aquela avalanche – que além das pedras incluiu o corpo de um colega de batalhão que teve o azar de estar mais perto do epicentro da queda - fora o suficiente para lhe fraturar a perna e torcer o joelho. Até que tivera sorte. Em dois anos de front, não sofrera ainda nenhum arranhão. Tirando pela surdez progressiva, inevitável devido aos tiroteios, vinha escapando ileso.

Saltou do ônibus, andou um pouco, dobrou uma esquina: estava na sua rua. Começou a descer a rua a pé. Ruazinha quieta, de paralelepípedos, muitas árvores. Só casas, nenhum prédio. Ninguém na rua naquela manhã. Um cachorro latiu em algum lugar. Seguiu rengueando, arrastando a perna dolorida. Aqui sim, estava tudo como deixara; diria que até as peças de roupa nos varais eram as mesmas.

Parou na frente da casa. Nem soube o que pensar primeiro. Estava igual. Quer dizer, um pouco mais velha, mais descascada; o portãozinho um pouco mais enferrujado. Mas a mesma. Continuava inclusive sem campainha no portão. A janela da frente estava aberta. Imaginou-se lá dentro, a cara de feliz incredulidade da mulher; antecipou o abraço e as lágrimas. Se pudesse, choraria.

Armava os dois braços para bater palmas quando a criança apareceu na janela.

Estacou, o gesto congelado. Era uma menina. Devia ter um ano de idade, não mais que isso. Loira. Linda. Os imensos olhos verdes da mãe. A mesma boca rasgada. Apareceu engatinhando, decerto subira no sofá que ficava embaixo da janela. Ela lhe fitou fixamente por um minuto. Depois sumiu lá pra dentro.

Ficou congelado na calçada por um instante. Olhou a casa. Depois, aproveitando que ainda estava fardado, ficou em posição de sentido, fez meia-volta e rompeu marcha. A guerra ainda não terminara.

 

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