Epifania
 



Contos

Epifania

Tusnelda Marins




Escrevia furiosamente numa folha de papel almaço. O quê? Ninguém sabia. Não mostrava seus escritos nem para a mulher, que nessas horas adejava em torno dele, tentando ler o que ele tanto escondia.

Era um homem normal: casado, vários filhos, funcionário público. Tinha essa mania. Repentinamente, parava o que estava fazendo, tirava as folhas de almaço da pasta e, com uma expressão de puro êxtase, rabiscava por horas a fio coisas que ninguém leria.

O mais estranho é que, de tempos em tempos, considerava sua obra pronta. Sentava-se então, na sala, perto da lareira, acendia um charuto cubano e, cheio de prazer, queimava folha por folha do papel, deixando as cinzas caírem nas brasas ainda quentes. Quando terminava dizia: pronto! E logo, alguém o via novamente debruçado sobre suas folhas, a escrever .

Um dia, amanheceu com uma dor esquisita no braço direito. Atribuiu-a a seus constantes escritos. Resolveu, com pesar, não escrever nada naquele dia. Era um domingo, pleno de sol. O rosto rebrilhava, colado à vidraça da sala; ele sussurrava ininterruptamente. As palavras que expulsava de sua boca dissolviam-se no baço da janela. Ficou horas assim. Precisava desocupar seu cérebro de qualquer maneira.

Em vão, sua mulher tentara tirá-lo de lá. Por fim, esquecida nos afazeres da casa, só foi lembrar-se dele quando tinha terminado o almoço. Encontrou-o caído, com dores terríveis no peito. Atônita, gritou pelos filhos. A filha viu o pai caído e ficou lívida. Seus olhares se cruzaram e ela compreendeu o que devia fazer. Ajoelhou-se, retirou do bolso da calça dele o charuto, pegou os papéis da pasta e iniciou a cerimônia da cremação. Ao seu redor, instalava-se o tempo da morte.

Mesmo tentada por uma pontinha incômoda de curiosidade, a mão nervosa ia incendiando as folhas, uma a uma, e jogando-as na lareira. Fixou os olhos na chama ondulante e resgatou um cantinho de papel. Surpreendeu-se com o que leu. Ficou um instante, muito quieta. Depois, virou-se devagar para o pai e olhou-o com uma lucidez absoluta. Debruçou-se sobre o corpo sem vida, sorriu-lhe como nunca o fizera e lhe deu o primeiro beijo de amor, nascido do entendimento de quem era aquele homem verdadeiramente. Decidiu nada contar à mãe.

No outro dia, a mãe viu-a escrevendo, furiosamente, numa folha de papel almaço...

 

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