Irina estacionou o carro em frente ao seu objetivo e franziu a testa descontente quando o celular tocou. Recolheu-o do banco e abriu a mensagem. Alguns contratantes não entendiam seu modus operandi, transgredindo as normas estabelecidas e deixando-a irritada. Só aceitou aquele serviço porque o dinheiro compensava. Teria, finalmente, um de seus sonhos realizado. Leu o recado para em seguida desligar o aparelho e guardá-lo no bolso da mochila.
Desembarcou e subiu rapidamente ao terceiro andar pelas escadas internas, dispensando o elevador. Aproveitou o tempo para calçar as luvas de látex. A sala que escolhera se encontrava em reforma, e os trabalhadores estariam aproveitando a folga do feriado. Abriu a porta com a cópia da chave, feita dias antes, e parou em frente à janela permitindo-se um leve sorriso diante de tamanha sorte. Ela via o restaurante sem qualquer obstáculo como postes, fios, árvores.
Puxou uma mesa pequena onde colocou a Glock que carregava na cintura, presa no cós da calça, e a mochila. De forma metódica, montou os componentes da AS50, sem deixar de verificar se todos estavam ajustados corretamente. Com a cantoneira acomodada no ombro, Irina observou o trânsito. O sedã preto aproximou-se do meio-fio e desligou o motor enquanto ela ajustou a mira e aguardou por seu alvo. Uma leve pressão no peito fez com que inspirasse profundamente. A imagem do homem presa na lente de forma precisa trouxe-lhe um fragmento do passado. A visão ficou turva e o dedo retrocedeu assim como sua memória. Não era a primeira vez que ela hesitava.
A primeira vez foi anos antes, em seu quarto. Na cama, a loira ao lado de Marcelo erguia o lençol para cobrir o corpo, ele; visivelmente nervoso, elaborava frases de desculpas. Irina saiu em busca da Glock e retornou apontando a arma para a cabeça daquele que acreditava ser seu verdadeiro amor. Não, dessa vez não hesitaria.
O grito das crianças correndo logo abaixo de onde Irina se encontrava a despertou. Apertou os lábios e retomou o foco. Tinha um serviço para terminar. Mirou e apertou o gatilho no instante em que uma voz masculina invadiu a sala.
― Hei! Você não pode ficar aqui.
Ela encarou o intruso, pegou a Glock que deixara sobre a mesa. A bala atingiu o peito magro do sujeito, e o sangue não demorou a se espalhar pela camisa branca e engomada. O homem tombou sem a menor reação.
Da janela pôde ver e ouvir o pânico das pessoas que se escondiam atrás dos carros estacionados. A porta de vidro do restaurante encontrava-se estilhaçada. Muitos apontavam para cima, em busca do lugar de onde o tiro havia partido. Marcelo mantinha-se agachado, com os dois seguranças protegendo-o e empurrando-o em direção ao restaurante enquanto o carro retornava do estacionamento.
Irina sabia que naquele momento seu principal inimigo chamava-se tempo. Não demoraria até a polícia aparecer, mas o que mais a preocupava era não completar o serviço. Passou por cima do corpo em frente à porta; desceu as escadas sem pensar nos degraus, ainda empunhando a Glock; atravessou a rua e parou somente quando, com dois tiros certeiros, derrubou os brutamontes.
Viu Marcelo correr para dentro do restaurante e o seguiu.
― Não quero atirar nas suas costas ― ela gritou para se fazer ouvir.
Mesmo com todo o burburinho ao redor, escutou o riso debochado que escapou dos lábios dele. Segurou a arma com força e esperou que ele se virasse. Percebeu, naquele momento, que o destino tinha um nome e a colocara diante de Marcelo.
― Faz tempo, não é, Irina?
― Muito.
― Achei que tivesse abandonado a profissão.
― Sempre ficam negócios inacabados.
― É negócio seu, ou de algum outro?
Ela afrouxou a arma. Algo em Marcelo havia mudado.
― Eu não sabia que era você.
― E se soubesse? Faria diferença?
Irina não respondeu. Escutou o barulho dos carros da polícia se aproximando.
― Não precisa continuar, Irina. Podemos retomar nossas vidas. Eu ainda....
Ela atirou antes que ele pegasse a arma na cintura. A bala acertou Marcelo no meio da testa, seus olhos azuis continuaram abertos, olhando para o teto.
― Largue a arma!
A voz de comando do oficial fez Irina se movimentar. Correu em direção à cozinha, espalhando temperos, panelas e assustando o cozinheiro. Alcançou a porta dos fundos, dando de cara com um muro de tijolos. Precisava vencer os quase dois metros de altura que a separavam da liberdade. Colocou a Glock na cintura e puxou com força um dos containers de lixo. Subiu agarrando-se à borda dos tijolos. Escutou mais um grito tentando detê-la e um tiro estourou um dos tijolos próximo a sua mão. Jogou-se para o outro lado, sem pensar. Caiu em um jardim estreito torcendo o tornozelo. Não pretendia parar. Mesmo mancando, prosseguiu. Mais uma casa. E outra. E a terceira. Mais três passos. Na última, a garagem aberta oferecia-lhe um carro a seu alcance. Puxou a maçaneta, que cedeu. Entrou, arrancou os fios debaixo do volante fazendo o motor roncar. Acelerou em direção à rodovia. Olhou pelo retrovisor. Os policiais ainda não começavam a pular o muro. Dobrou à direita e abandonou o veículo em uma rua lateral distante algumas quadras de onde deixara Marcelo.
Uma hora depois, no chalé em frente ao lago, sentou-se no sofá observando o fogo na lareira. A imagem de Marcelo no restaurante continuava a incomodá-la. Talvez o contratante soubesse de sua história e a usara para eliminá-lo, ou tudo poderia ter sido apenas uma coincidência.
Mais um bip chegou, iluminando a tela do celular, para confirmar que o dinheiro se encontrava em sua conta. Conferiu no computador se a mensagem dizia a verdade. A quantidade de zeros que seguia o primeiro algarismo provocou-lhe um sorriso de satisfação, mesmo que a sensação de ter sido usada pelo contratante ainda a incomodasse.