Madrugada
 



Contos

Madrugada

Ana Rafaela de Alcântara


Já passava de quatro da manhã e o choro persistia. A mãe levantou-se da cama com dificuldade e pôs-se a andar pelo quarto escuro, arrastando os chinelos com passos pesados. Há quantas noites será que não dormia? Olhou para baixo e os peitos fartos ainda vazavam leite. Lembrou-se que não trocava o pijama há uns dois dias, mais ou menos. Se tivesse tido a chance de se olhar no espelho, talvez repararia o alvoroçar dos seus cabelos, ou as olheiras que marcavam sua expressão distante. Mas o espelho era quase um luxo nesses dias que se misturavam com as madrugadas e pareciam não ter mais fim. Do outro lado da cama, o pai dormia um sono pesado: "Melhor assim, amanhã cedo ele trabalha", pensou. No celular, as dezenas de mensagens que não conseguiria responder, porque o choro persistia.

Foi para a sala, sentou-se rígida no sofá, ligou a televisão e aumentou o volume, mas nada calava o choro que cortava a madrugada como um bisturi afiado. Tentou ler um livro, mas as palavras dançavam uma valsa triste, embaralhando-se desconectadas, porque aquele choro não deixava. Levantou-se lentamente com a mão amparando a barriga recém-operada e foi até a cozinha, ignorando a pilha de louças para lavar, e resgatou uma caneca ali no meio para esquentar um café. Tomou um gole, mas o choro não parava. Jogou o resto fora.

Respirou fundo, atravessou o corredor a passos lentos e abriu a porta do quarto do bebê. Encarou os quadros que escolheu com cuidado meses atrás, pendurados numa parede colorida com tinta quase fresca. Parecia uma outra vida, a inocência do desconhecido. O choro não parava, e a mãe foi até a cômoda onde repousava o trocador e as fraldas descartáveis imaculadamente organizadas. Abriu a segunda gaveta e escolheu um casaquinho cinza. O choro ficou definitivamente mais alto com sua presença ali, e a mãe enfim resolveu se aproximar do berço do bebê.

O bebê não estava. O berço vazio, os braços vazios e um ventre vazio. E bem ali na sua frente, a ausência dilaceradora que preenchia todo o quarto. Com o sol já nascendo pela janela, a mãe enxugou o rosto, cheirou o casaquinho cinza e fechou a porta do quarto, sem saber se um dia aquele choro cessaria.


Ana Rafaela de Alcântara é formada em Publicidade e Propaganda (Mackenzie/SP) e Psicanálise (CEP/SP). Ainda criança descobriu o poder das palavras e tem escrito desde então. Teve seu primeiro conto publicado na coletânea "As Vidas que Ninguém Vê". Em seu tempo livre faz trilhas, costura bonecas de pano e não perde um show de Rock `n Roll. Participa do Curso Online de Formação de Escritores

 

Cadastre-se para receber dicas de escrita, aviso de concursos, artigos, etc publicados no portal EscritaCriativa.com.br