Sou leitor de Machado de Assis desde a pré-adolescência e, mais tarde, tornei-me seu estudioso, a ponto de produzir artigos, uma dissertação de mestrado e de publicar um livro sobre sua obra. Neste artigo, particularmente, quero explicar como um menino, que nasceu e se criou próximo a uma das regiões periféricas mais pobres da cidade de São Leopoldo (RS), na zona então denominada Chácara da Prefeitura, no Bairro Vicentina, veio a se tornar um homem tão identificado, em aspectos muito importantes, com o autor que aprendeu a admirar. Com certeza, Machado de Assis sofreu condições muito mais desfavoráveis do que eu em sua infância. Apesar disso, o menino Joaquim Maria, garoto negro, pobre e órfão do Morro do Livramento, além de fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, tornou-se e continua a ser considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos por muitos de seus leitores e por boa parte da crÃtica literária nacional. Guardadas as devidas proporções, essa e mais duas outras importantes relações podem ser destacadas para a compreensão de minha identificação pessoal com Machado.
A segunda dessas relações é uma certa similaridade de mobilização pela ética humano-genérica. Machado de Assis propôs reflexões sobre a necessidade de posicionamentos, atitudes e decisões acima das ações cotidianas, do senso prático comum e de nossos próprios interesses particulares. O caminho que percorri e pelo qual prossigo em minha vida, o percurso de escolhas e de etapas para chegar, por exemplo, até aqui, neste espaço, para novamente escrever sobre Machado, foi longo e difÃcil, mas foi influenciado e orientado por esse tipo de valor. Não somos perfeitos, ninguém é: nem eu, nem tu, nem perfeito foi Machado de Assis. Contudo, posso declarar que, em minha trajetória, sempre procurei rejeitar procedimentos inadequados ou recursos ilÃcitos em relação à quilo que considero correto e ético. Normalmente, quem age assim perde oportunidades, perde espaço, perde mais tempo para alcançar seus objetivos e perde, muitas vezes, a vontade de lutar por seus sonhos. Perde, perde e perde! Geralmente, quem age assim é taxado de tolo, de orgulhoso, de radical, de fraco, de louco e é considerado alguém para quem não há espaço em um mundo em que as práticas são outras, um mundo feito para “os vencedores”.
Bem cedo, Machado de Assis perdeu qualquer tipo de esperança na existência de uma propensão coletiva por essa dimensão ética humano-genérica. Machado não deixou de propor tal dimensão como modelo para a construção de uma nova civilização e buscou, na tradição cultural, elementos que a ilustrassem e referenciassem. Contudo, quaisquer de suas perspectivas otimistas esbarravam em um contexto histórico e social em total desajuste a essas proposições. O grande escritor e intelectual tornou-se, assim, um homem extremamente cético e irônico.
Através do diálogo que o autor estabeleceu com a tradição cultural, esse legado humano foi reapresentado de forma rebaixada, para denunciar o descompasso e a incompatibilidade estrutural entre um modelo elevado de civilização e a modernidade universalizadora do materialismo egocêntrico nas sociedades capitalistas emergentes. Se Machado vivesse em nossa época, ainda enfrentaria essas mesmas condições, o que confirma e justifica sua irremediável desconfiança em relação à humanidade.
Muitas vezes, o narrador machadiano torna-se repulsivo por forçar esse desmascaramento. Ao denunciar a hipocrisia social, é sincero de uma forma que é qualificada como afrontadora e ofensiva, não assimilável por essa sociedade que é desmascarada. Mais ainda, Machado e seus narradores constrangem ao revelar que sinceridade não é sinônimo de honestidade. Podemos ser sinceros ao mostrar a parte escondida da realidade. Não nego que essa sinceridade tenha valor, mas muito mais valor teria se acompanhada da coragem de posicionamento a favor da busca da forma mais honesta de atuação diante dessa realidade. Reitero, porém, que não somos perfeitos, ninguém é: nem eu, nem tu, nem perfeito foi Machado de Assis.
A terceira relação importante de minha identificação com Machado de Assis é o apreço do escritor pela leitura dos textos bÃblicos. Nesse sentido, não interessa a discussão sobre a crença ou a descrença de Machado em relação à BÃblia. Creio que qualquer hipótese que aproxime Machado de uma compreensão da proposta de revelação de sabedoria existencial proposta pela BÃblia é de difÃcil aceitação, não por inconsistência, mas por uma tradição consolidada de conhecimentos hegemônicos que se impõem. Tampouco cabe a mim ou a alguém definir essa questão, já que o próprio escritor não expôs claramente sua posição.
Além disso, Machado será sempre um enigma. Todavia, tenho o direito de compreender e ler sua obra a partir dessas lacunas de indefinição. Um conhecedor dos textos bÃblicos compartilhará, com Machado, uma leitura diferenciada sobre a utilização que o autor fez da intertextualidade com esses textos. É esse direito que também defendi para desenvolver leituras bastante originais e consistentes em minha trajetória como pesquisador da obra machadiana e na publicação de meu primeiro livro, “Textos do Novo Testamento nas crônicas de Machado de Assis”.
Hoje, passados 185 anos de seu nascimento, Machado de Assis segue em destaque como um dos grandes escritores da literatura universal. É por isso que escrevi este texto e é por isso, também, que tu estás a ler o que escrevi. Se chegaste até aqui, provavelmente é porque também és admiradora ou admirador de Machado de Assis. Essa admiração é nosso elo, e sua obra vai além do que ele publicou, porque passou a fazer parte de nossas vidas, nas quais repercute e as quais transforma.