Apresentar uma análise crÃtica sobre uma coletânea de minicontos é uma tarefa complicada, mas não tanto quanto a produção de uma obra desse gênero. Quando quem a produziu é uma pessoa que você conhece e passa a admirar, não só pela sua escrita, mas também pela sua dedicação à promoção da Literatura, essa situação pode ser facilitada ou dificultada, o que dependerá, em parte, dos motivos para a realização dessa análise. Argumentarei a partir da perspectiva menos complicada, mediante a motivação original a qual tem me desafiado a ler, resenhar e ensaiar sobre obras literárias de estilos distintos.
Foi por intermédio de um convite para participação em um grupo de leitoras e leitores formado por amigas e amigos que conheci o escritor Doralino Souza da Rosa, também editor da revista Paranhana Literário. Aliás, foi em função de nosso convÃvio nesse grupo que surgiu o convite para colaborar como colunista nessa revista. O novo livro do autor, "Enquanto espero o troco do café", foi um dos recentes desafios lançados pela curadoria democrática do coletivo, não apenas pelo fato de o escritor ser um de seus integrantes, mas principalmente pela qualidade da obra, critério balizador de todas as indicações para leitura.
A obra revela um trabalho minucioso com a linguagem, especialmente em relação à concisão e à precisão. O escritor gaúcho Doralino Souza da Rosa é reconhecido como excelente contista, tendo sido finalista do Prêmio Ages, promovido pela Associação Gaúcha de Escritores, em duas edições: com "Anjos também usam boné", em 2014, e "O Cânion de dentro", em 2016. Com seu novo livro, o autor demonstra ser um especialista na microliteratura de elevada expressividade criativa, a qual se afirma por meio da qualidade narrativa e da profundidade do subtexto, caracterÃsticas dos melhores contos e minicontos. No prefácio de "Enquanto espero o troco do café", o escritor Robertson Frizero é muito feliz e igualmente preciso ao comentar que a leitora ou o leitor tem "em suas mãos um livro exemplar do que os bons textos mÃnimos devem ser. Doralino Souza é um mestre nesse ofÃcio de contar histórias altamente impactantes com o mÃnimo recurso". Os setenta minicontos que compõem a coletânea não destoam em qualidade. Ao contrário, a força de todo o conjunto é um dos elementos que se destaca na obra, com a constância e a qualidade Ãmpares também ressaltadas por Frizero.
O próprio Doralino aponta dois grandes contistas como importantes influências em sua produção literária: Rubem Fonseca e Sérgio Faraco; deste, observa-se o mesmo esmero e rigor na concisão linguÃstica; daquele, observa-se, nitidamente, a temática realista em enredos permeados por violência e conflitos sociais no contexto deste paÃs-continente repleto de desigualdades.
Os tÃtulos dos minicontos também são elaborados com muita precisão, sem revelarem mais do que é necessário, os quais, só após a leitura da narrativa, se completam como códigos. Ressoam como palavras-chave enigmáticas, como sombras que se desfazem aos poucos, mas permanecem abertas a plurissignificações. Um dos temas recorrentes nos textos é a morte, os quais surpreendem e chocam com enredos sobre fratricÃdio, homicÃdios, suicÃdios, acidentes de trânsito fatais, feminicÃdio, mas também comovem em representações de situações de perdas que se aproximam e/ou se consolidam por circunstâncias inevitáveis como a velhice e enfermidades como, por exemplo, uma grave doença pulmonar, Alzheimer, depressão e Covid. A última, aliás, é tema de dois minicontos, um dos quais é o excelente "Corrente no escritório", uma espécie de paródia do poema "Quadrilha", de Manuel Bandeira.
Fabiana abraçou Camila, que deu três beijos em Carlos, que cumprimentou Artur, que sussurrou no ouvido de Neusa, que confidenciou para Lurdes, que dividiu um cigarro com Andreia, que beijou na boca de Emerson, que fez amor com Joaquim, que não era do escritório e tinha consulta médica agendada para a manhã seguinte. Foi entubado dias depois.
Evidentemente, não é possÃvel comentar cada narrativa, detalhadamente, sem prejuÃzo ao prazer de sua leitura direta e original. Esse é mais um desafio para quem se propõe a apresentar uma análise sobre uma coletânea de minicontos. Felizmente, tive o privilégio de ser aluno do inesquecÃvel professor Sérgio Farina, o qual propunha um método de análise crÃtica que apontasse, ao final de cada leitura, uma palavra-chave representativa do genotexto ou da leitura profunda do texto. Hoje, esse método desponta, apropriadamente e quase naturalmente, como um bom instrumento para análise de micronarrativas. Para instigar a sua curiosidade, cara leitora ou caro leitor, creio que vale a pena mencionar as palavras-chave que tais minicontos suscitaram neste resenhista, além daquelas já mencionadas anteriormente, relacionadas à morte, para compreensão da diversidade de temas e sentidos e da profundidade das questões existenciais humanas e sociais abordadas, as quais fazem com que todos os minicontos da coletânea nos toquem, desacomodem, provoquem, incomodem e/ou choquem. Entre essas palavras definidoras da estrutura profunda desses textos, aponto as seguintes: estupro infantil, violência urbana e rural, perdão, prepotência, masculinidade tóxica, arrependimento, separação, carência, vingança, deficiência fÃsica, loucura, machismo, humilhação, desigualdade social, xenofobia, atração sexual, racismo, negligência, paternidade, solidão, abandono, música popular, vÃcio, velhice, paranoia digital, alfabetização, imaginação infantil, mentira, desentendimento, psicopatia, ignorância, inveja, etarismo, vaidade, rancor, aborto, vazio existencial, identidade transgênero, ruÃna, traição, fé, descrença, indiferença, leitura, miséria, homofobia, incesto (?), êxodo rural, abuso sexual, mediocridade, egoÃsmo, bondade, rivalidade, arte de rua, distanciamento, rotina.
Por fim, deixo uma dica: prepare um bom café, quente e forte, para acompanhar a leitura de "Enquanto espero o troco do café", e delicie-se e surpreenda-se com seus setenta minicontos. Todavia, também "se prepare": há narrativas que lhe levarão a nocaute no meio do primeiro round e, quando você se recuperar, não adiantará mais; os minicontos e os embates chegaram ao fim, e os narradores nunca te esperarão para receber o troco.
Observação: este texto foi produzido, originalmente, para publicação nas colunas de Elenilto Saldanha Damasceno nos sites "Artistas gaúchos" e "Escrita criativa"; todavia, por solicitação do próprio Doralino de Souza Rosa, foi disponibilizada para publicação na coluna "Ressonâncias", na edição da Paranhana Literário de novembro de 2023. A produção da revista foi interrompida, à época, devido ao adoecimento de Doralino. A edição não foi concluÃda, e a revista não foi mais publicada desde então. Esta publicação aqui, agora, presta minha homenagem e meu agradecimento ao camarada Doralino, grande escritor, editor, jornalista e ativista cultural, falecido em 11 de junho de 2024.