Considerações sobre o modelo hegemônico da historiografia literária brasileira
 



Considerações sobre o modelo hegemônico da historiografia literária brasileira

por Elenilto Saldanha Damasceno

A historiografia literária brasileira pode ser apresentada através de diferentes parâmetros, mas tem prevalecido o critério cronológico para estabelecimento de uma linha do tempo de seu desenvolvimento. Em relação a essa ordenação temporal, uma das perspectivas vigentes considera o surgimento de uma Literatura nacional somente a partir de 1822, com a proclamação da independência do Brasil. Assim, foram definidas duas fases:

a) Literatura colonial: de 1500 a 1822;

b) Literatura brasileira: de 1822 até o presente.

Ainda em relação à organização sequencial cronológica, predominam a análise e caracterização estilística da criação literária de cada época e também a observação das transformações nas transições entre as escolas literárias no decorrer dos séculos. Essa formulação é a mais recorrente e, geralmente, associa os aspectos literários e culturais a outros (econômicos, políticos, sociais) relacionados ao processo histórico de desenvolvimento do país. Resumidamente, os seguintes períodos foram demarcados:

a) De 1500 a 1600 (século XVI): período das denominadas Literaturas informativa e catequética.

A Literatura informativa abrangeu, principalmente, os relatos dos primeiros “descobridores” ou invasores. No período inicial do processo de colonização, a economia baseava-se na exploração de pau-brasil. Estabeleceram-se os núcleos iniciais de ocupação e povoamento territorial. Em Lisboa, em 1572, foi publicado “Os lusíadas”, exatamente em um período de declínio político que levou Portugal a se tornar território sob o controle do rei Felipe de Espanha em 1580. A ação jesuítica de catequização de nativos, orientada pela Contrarreforma inquisitorial, exerceu fundamental importância na manutenção da ordem colonial.

b) De 1601 a 1700 (século XVII): período do Barroco.

Padre Antônio Vieira e Gregório de Matos foram os grandes nomes da Literatura barroca colonial. Não há certeza de que todos os textos atribuídos ao último sejam de sua autoria, pois muitos desses poemas foram traduções e glosas (desdobres, releituras e adaptações de outros poemas). A economia da colônia baseava-se na exploração de cana-de-açúcar. Ocorreu também a substituição da escravização dos povos nativos pela escravização de povos traficados da África. Padre Antônio Vieira foi um defensor do fim da escravização dos indígenas e ferrenho incentivador de sua catequização, mas foi conivente em relação à imigração forçada e à escravização de africanos.

c) De 1701 a 1800 (século XVIII): período do Arcadismo ou Neoclassicismo.

No princípio do século XVIII, iniciou-se o ciclo do ouro, o qual transferiu o eixo de exploração econômica do Nordeste para Minas Gerais. Foi um século em que o mundo passou por profundas transformações a partir de três momentos históricos determinantes: em 1760, o início da Revolução Industrial e o uso das máquinas a vapor mobilizaram irreversivelmente o crescimento econômico capitalista e o desenvolvimento social urbano; em 1776, ocorreu a independência das treze colônias e a fundação dos Estados Unidos da América; e em 1789, a Revolução Francesa lançou os fundamentos do Estado moderno, institucionalizou os preceitos liberais de cidadania e direitos individuais e estabeleceu a razão humana como fundamento único do conhecimento. A ideologia liberal republicana foi absorvida por poetas pertencentes à elite intelectual de Minas Gerais, envolvidos não só com a Literatura arcádica, mas também com o movimento político da Inconfidência Mineira. Na Europa, já a partir da segunda metade desse século, o Romantismo surgiu e afirmou-se na Alemanha, na França e na Inglaterra.

d) De 1801 a 1922 (século XIX e início do século XX): período do Romantismo, Parnasianismo, Simbolismo, Realismo, Naturalismo e Pré-Modernismo.

Com a vinda de D. João VI e da família real para o Brasil em 1808, o Rio de Janeiro tornou-se a capital colonial. A exploração do ouro entrou em decadência e deu lugar aos ciclos de produção de algodão e, posteriormente, de café. Em 1822, D. Pedro I decretou a independência do Brasil. As ideias liberais embasaram o discurso do novo governo e a Constituição de 1824, mas a nova nação nasceu com a manutenção da barbárie escravagista. Nesse período, despontou uma historiografia literária brasileira inicial, a partir de contribuições europeias. O francês Jean-Ferdinand Denis e o austríaco Ferdinand Wolf, ao estudarem a História da cultura europeia, abordaram a Literatura portuguesa e, por extensão, apresentaram os primeiros estudos sobre a História da Literatura no Brasil. Tais estudos, de certa forma, contribuíram para a posterior adaptação do Romantismo, em meados do século, como escola literária apropriada para projetar a construção da identidade coletiva do país emergente. A exaltação nnacionalista romântica foi o instrumento para a criação dessa origem ou matriz identitária brasileira. Em nossa historiografia literária, essa vertente recebeu o nome de Indianismo. Assim, o Romantismo estabeleceu um paradoxo: a exaltação retórica dos povos originários como fonte identitária em contraste com a triste realidade resultante do genocídio e do abandono que esses povos sofreram. No quarto final do século XIX, ocorreram importantes transformações no Brasil. Em 1888, foi decretada a abolição da escravatura. Em 1889, foi proclamada a República. Na Literatura nacional, o Romantismo deu lugar a novas escolas literárias. Na prosa, afirmaram-se o Realismo e o Naturalismo e, na poesia, o Parnasianismo e o Simbolismo, os quais se assemelhavam pelo rigor formal. Iniciou-se de fato, nesse período, a formação de uma crítica literária brasileira, através dos estudos de José Veríssimo, Sílvio Romero e do próprio Machado de Assis. A Academia Brasileira de Letras foi fundada em 1897, no augge do prestígio do Parnasianismo. Nas duas décadas iniciais do século XX, ocorreram profundas transformações nas relações entre capital e trabalho, com a ascensão de uma elite industrial capitalista e burguesa, o crescimento do trabalho assalariado, a participação dos imigrantes na sociedade e a formação de classes trabalhadoras rurais e urbanas. A partir de 1910, a produção e a exportação de café atingiram seu ápice. São Paulo tornou-se o centro da economia brasileira, com acelerado crescimento urbano e grande circulação de dinheiro.

e) A partir de 1922 (séculos XX e XXI): período do Modernismo.

Em 1922, ano das comemorações do centenário da independência, um grupo da elite social paulistana promoveu a Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo, evento que, à época, teve apenas importância local. O propósito desse grupo foi disputar a hegemonia cultural no país. O alvo atacado pelos modernistas foi a Academia Brasileira de Letras e, assim, o principal embate foi travado contra o Parnasianismo, a poesia oficialmente prestigiada. A partir desse núcleo intelectual modernista, no qual Mário de Andrade se destacou como principal expoente, despontaram os críticos literários que estabeleceram a formulação das diretrizes do atual modelo historiográfico literário brasileiro, principalmente após a criação da Universidade de São Paulo. A partir desse momento, o Modernismo predominou como parâmetro para análise e classificação de toda a criação literária no Brasil a partir do século XX. As obras produzidas durante o período de transição entre as escolas anteriores e o movimennto modernista de 22 foram classificadas como pré-modernistas. A geração de autores posterior a de 22, surgida a partir de 1930, foi denominada de segunda geração modernista. A partir de 1945, uma nova geração foi denominada de terceira geração modernista. Na década de 60, identificou-se uma radicalização do Modernismo de 22 (Concretismo e Tropicalismo), a qual também demarcou uma espécie de transição para o Pós-modernismo. Ou seja, a historiografia literária passou a apresentar o Modernismo, desde então e sempre, como referência principal e pretensamente capaz de englobar toda a criação literária coeva ou vindoura. O termo Modernismo, subjacente ao conceito de modernidade contemporânea, passou a agrupar todas as correntes e estilos literários em uma mesma categoria. Até hoje, essa hegemonia persiste. Ora, se a categoria Modernismo serve para tudo, talvez isso seja a indicação de que, na realidade, ela já não sirva mais. Atualmente, esse modelo hegemônico da historiografia literária brrasileira é bastante questionável, uma vez que se compreende que se estabeleceu a partir de comprometimentos ideológicos e critérios historicamente condicionados, a partir de conceitos, preconceitos e juízos de valor arbitrários que levaram à distinção e segmentação entre polos desiguais instituídos como centrais/hegemônicos ou periféricos/subordinados, divisões essas que se revelam como resquícios permanentes da estrutura colonialista na base de sustentação das tantas desigualdades da sociedade capitalista moderna.

 

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